A maioria dos estados não divulga à população os dados sobre as raças das vítimas de Covid-19 no Brasil. Apenas oito têm os dados disponíveis e acessíveis. É o que mostra um levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa formado por G1, O Globo, Extra, Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL.
Para especialistas, a informação é fundamental para que seja pensada uma política de saúde com equidade.
Além disso, 12 estados não divulgam, em seus boletins, informações sobre testes inconclusivos, ou seja, sem resultado definido. Trata-se de um dado relevante, especialmente para o acompanhamento do panorama da Covid-19 no país.
Considerando que há subnotificação e falta testagem em massa, o número de exames na fila, isto é, aguardando definição é um dos componentes que pode revelar com maior precisão a situação de cada estado. Mostrar um eventual aumento de casos suspeitos e os gargalos na testagem podem apontar, por exemplo, se o ritmo de avanço da pandemia é mesmo o apresentado nas notificações diárias.
“Como é que a gente se planeja sem saber o tamanho do problema? Se falta informação, é difícil planejar qualquer coisa. Aliás, planejamento estratégico é algo que falta desde o começo: tem que olhar os dados e construir algum tipo de política, mas está difícil. Mesmo testando pouco, chegamos a 1 milhão [de casos]. E neste momento de relaxamento é quando deveríamos fazer ainda mais testes, e de forma integrada: se achar um caso em uma família, isolar e acompanhar estes outros contatos diretos, para quebrar a cadeia de transmissão. Isso não está sendo feito. Esta seria a hora de aumentar muito o número de testes, e é o que outros países estão fazendo”, afirma Diego Xavier, epidemiologista do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz.
O Brasil passou de 50 mil mortes neste sábado (20).
Raio X da transparência
O levantamento feito pelo consórcio teve como objetivo fazer um raio X sobre a divulgação dos dados de Covid-19 por cada estado do país.
Foram pesquisadas as seguintes informações:
- Existe um portal com os dados?
- A divulgação é feita só no portal ou por algum outro meio?
- Quantas vezes os números são atualizados por dia?
- Qual o horário dessa divulgação?
- Há informações consolidadas de casos e mortes desde o início da pandemia?
- Há dados por município?
- Há informações sobre a idade das vítimas?
- Há informações sobre o sexo das vítimas?
- Há informações sobre a raça das vítimas?
- Há informações atualizadas sobre o número de testes feitos?
- Há informações atualizadas sobre a quantidade de testes inconclusivos ou não processados?
- Há informações atualizadas sobre a ocupação de leitos de UTI?
- Os dados disponíveis podem ser baixados em formato de planilha?
O levantamento mostra que todos os 26 estados e o Distrito Federal contam com um portal na internet para divulgação dos dados. E que, além disso, uma boa parte ainda publica os dados nas redes sociais e envia por e-mail e WhatsApp.
Todos também informam os casos e mortes por município.
Apesar de não haver uma padronização, todos têm ainda algum tipo de dado sobre a idade e o sexo das vítimas. Em Roraima, por exemplo, há apenas dados referentes a grupos etários, e não as idades em si. No Pará, há apenas gráficos com essa informação. E no Amazonas, não há um detalhamento, apenas números gerais dispostos. No geral, porém, a informação é coletada e divulgada.
São 17 estados que divulgam os dados apenas uma vez ao dia, nos horários mais variados possíveis. Enquanto Minas Gerais publica sempre às 10h, Roraima sempre passa os dados após as 19h30, por exemplo.
Já Goiás divulga os dados de hora em hora. No Ceará, há três boletins por dia. E no DF, um às 12h e um às 18h.
São poucos os estados também que não têm informações atualizadas sobre a ocupação de leitos na UTI. O que acontece é que parte não possui a distinção entre os leitos públicos e privados. E alguns simplesmente não têm os dados dos particulares.
Seis estados (AL, BA, DF, MT, RR e SC) não permitem que os dados sejam baixados em formatos de planilha. Outros três (PA, PB e SE) possibilitam, mas para apenas parte das informações.
Para a diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci, houve uma melhora por parte dos estados durante a pandemia. A entidade faz uma avaliação do nível de transparência de cada um dos estados.
“Três meses depois do início da crise, apenas 64% dos estados estão divulgando microdados, formato que permite fazer as análises mais aprofundadas e as projeções. Embora tenham melhorado, dados de ocupação de leitos e de capacidade de testagem seguem sendo gargalos — o que é grave, agora que os estados estão reabrindo suas atividades”, afirma.
“Há problemas de frequência de atualização e de inconsistência entre diferentes fontes, entre governo federal e estados e às vezes dentro do próprio estado, entre bases e plataformas distintas. Há muito pouca transparência ainda sobre as metodologias de coleta de dados e as definições sobre o que o dado considera”, diz Fernanda. Segundo ela, a Open Knowledge Brasil fará uma próxima fase da avaliação no início de julho e também vai passar a incluir capitais.
Raça e saúde
O levantamento feito pelo consórcio aponta que apenas oito estados (AL, AM, CE, ES, PR, RN, RO e RS) divulgam dados raciais sobre as vítimas da Covid-19.
A pesquisadora Emanuelle Góes, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia, afirma que é importante coletar dados sobre raça, gênero, faixa etária, entre outras informações, para que seja possível entender o perfil populacional das pessoas atingidas pela pandemia, avaliar as políticas públicas em curso e planejar novas estratégias de atendimento.
“Desagregação por raça e cor tem a ver com pensar política de saúde com equidade e com superação das desigualdades. Na pandemia, isso se torna urgente”, afirma Góes.
“É uma estratégia de superação do racismo na saúde e das desigualdades raciais no país. Só pode pensar essas coisas se tiver essas informações desagregadas. Então a importância é nesse sentido de evidenciar o racismo na saúde e pensar política de saúde para superar ou mesmo para mostrar que a gente superou o racismo em alguns sentidos.”
Por isso, para a pesquisadora, essa falha é grave, já que dificulta o acompanhamento da doença, das mortes e dos acessos aos serviços de saúde pelos diferentes grupos raciais. Consequentemente, não é possível avaliar se alguma política específica surtiu efeito nos atendimentos prestados nem é possível determinar quais políticas devem ser implementadas.
“É importante ter a informação de taxa de mortalidade por raça. Tem que ter essa variável [raça] não só em determinadas situações, mas em várias etapas do atendimento. Testagem, notificação, hospitalização e o óbito”, afirma.
A maior parte dos estados com dados disponíveis sobre raça, porém, apresenta informações básicas sobre o assunto, como o total de casos confirmados e de óbitos por raça. Não há informações sobre testes e hospitalizações.
Já muitos dos que não possuem nenhuma informação afirmam que raça não é uma variável que consta dos boletins preenchidos pelas unidades de saúde.
Fernanda Campagnucci diz que o preenchimento do dado de raça/cor/etnia é muito falho. “Quando a sociedade cobra e os governos orientam na ponta, isso pode ser melhorado.”
“A inserção depende da autonomia e do engajamento dos municípios e dos estados. (…) Então, além de cobrar visibilidade, tem que cobrar também [a inserção] desse quesito”, diz Emanuelle Góes.
“Quando não há a percepção por parte dos profissionais que estão na ponta preenchendo esse dado que essa informação é fundamental para as políticas públicas, não há um incentivo para a coleta adequada. Cabe aos gestores fazerem essa sensibilização. Mas não vemos por parte do Ministério da Saúde uma liderança nesse sentido”, completa Fernanda.
Procurado, o ministério afirma que o campo raça/cor é indicado como essencial no preenchimento das notificações de casos e óbitos da Covid-19 no Brasil pelas secretarias de Saúde. “No momento estão sendo feitos ajustes para que essas informações sejam de preenchimento obrigatório a partir da semana que vem.”
Uma portaria do próprio órgão, de 2017, estabelece que “a coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor são obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde”.
Para o infectologista Hélio Bacha, do Hospital Albert Einstein, a ausência dos dados revela “uma tentativa de esconder” o preconceito racial.
“Nós precisaríamos estudar as desigualdades, porque esta condição desigual é acima de tudo antiética. Se as secretarias tivessem estes dados, a desigualdade ficaria mais do que clara. A única forma que temos de avançar neste assunto é primeiro medir, conhecer o problema.”
“A falta de preocupação ao coletar estes dados mostra como governos estaduais não estão empenhados em combater o racismo”, afirma Manoel Galdino, diretor-geral da Transparência Brasil, organização que combate a corrupção e promove o controle social do poder público. “Essa informação é muito importante para fazer políticas públicas que enfrentam a desigualdade racial. A gente sabe que as pessoas negras são proporcionalmente mais afetadas pela Covid-19, isso fica claro nos estados que coletam esses dados.”
População negra: mais vulnerável
A diferenciação racial é importante, segundo Emanuelle Góes, porque negros e brancos têm indicadores sociais, contextos econômicos e habitacionais diferentes.
“A gente observa que o número de hospitalizações para pessoas brancas é maior, mas o de mortalidade é maior para a população negra”, diz. “A população negra, em geral, está nas franjas das cidades, nas periferias, e periferia não tem acesso a serviço de saúde, principalmente de média e alta complexidade, que é o que a Covid-19 tem demandado.”
Outro motivo, segundo a pesquisadora, é que muitas pessoas negras têm resistência a procurar serviços de saúde. “É um espaço que discrimina, que pratica o preconceito racial. As pessoas podem até não ter a consciência de que é por isso que estou falando, mas esperam mais tempo para procurar o serviço por conta disso”, diz.
Além disso, a pesquisadora afirma que o tratamento em si também pode ser diferente entre os grupos raciais. “Falando de outras experiências e outros estudos sobre saúde pública, posso dizer que o serviço não é resolutivo para a população negra por conta do racismo institucional.”
Por conta dessas características, Góes afirma que é essencial considerar a análise de dados raciais no acompanhamento das políticas públicas — e das de saúde, especificamente. “Racismo é uma questão central no nosso país. A gente o vivencia no sistema que estrutura a vida das pessoas no país. Por isso, a gente precisa da informação a nível populacional.”
Em um comunicado feito no início deste mês, a própria Organização das Nações Unidas fez um alerta para o “impacto desproporcional” da pandemia em minorias raciais.
“Os dados nos mostram um impacto devastador da Covid-19 sobre pessoas de ascendência africana, bem como minorias étnicas em alguns países, incluindo Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos”, disse a alta-comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet.
Segundo ela, este impacto resulta de múltiplos fatores relacionados à marginalização, discriminação e acesso à saúde destas populações.
Em São Paulo, dados apontam que pessoas pretas têm 62% mais chance de morrer pela doença do que pessoas brancas.
Outro estudo da PUC-Rio também mostra que as chances de um paciente preto ou pardo e analfabeto morrer em decorrência do novo coronavírus no Brasil são 3,8 vezes maiores do que as de um paciente branco e com nível superior.
A comparação feita pelos pesquisadores mostra que, entre os pacientes internados de cor branca, 62,07% se recuperaram, enquanto 37,93% morreram. Entre pretos e pardos, a situação se inverte: são 54,78% de mortes e 45,22% de recuperados.
Fonte: G1 – Bem Estar
Créditos: Polêmica Paraíba