Lesões na nuca e na cabeça, nos braços e nas costas. Um exame de corpo delito atesta as marcas no corpo da carioca A. P. Ela relata que o marido a espancou depois de tentar forçá-la a fazer sexo em um momento em que ela não queria. A jovem E. B. não ficou com hematomas no corpo, mas conta que os traumas de um abuso sexual cometido por um líder religioso quando ela era pequena a marcaram durante toda a vida. Ambas eram Testemunhas de Jeová quando foram vítimas dos crimes, contam, assim como seus abusadores.
E. B. e A. P. estão entre as seis ex-Testemunhas de Jeová que disseram à BBC News Brasil terem sido coagidas a procurar a igreja — e não a polícia — quando eram vítimas de algum ataque. Elas afirmam que a organização teria acobertado os crimes e protegido predadores. Parte dos crimes, dizem, foram cometidos por “anciãos” — homens respeitados dentro da igreja, que têm privilégios e atuam como conselheiros e juízes.
A BBC News também teve acesso a documentos internos da organização e conversou com quatro ex-anciãos que relatam que as ordens que recebiam eram para lidar com problemas internamente, evitando procurar autoridades a todo custo. As acusações de acobertamento de abuso sexual e violência contra a mulher dentro do grupo estão sendo investigadas pelo Ministério Público de São Paulo, mas as denúncias não se restringem ao Estado. A BBC conversou com vítimas também no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
A associação das Testemunhas de Jeová do Brasil diz que “abominam qualquer tipo de violência, inclusive a sexual e a consideram como um crime” e nega que haja qualquer tipo de acobertamento de crimes. A entidade diz que também que os casos específicos investigados pelo Ministério Público estão sob segredo de Justiça. “As Testemunhas de Jeová reconhecem que compete às autoridades apurar se houve ou não algum delito e elas irão colaborar com qualquer procedimento jurídico”, diz a organização em nota.
“O bem-estar de crianças e adolescentes é de máxima importância para as Testemunhas de Jeová, por isso publicamos inúmeras matérias baseadas na Bíblia para ajudar os pais a cumprir a sua responsabilidade de proteger e instruir seus filhos”, dizem, citando uma série de publicações como referência, como, por exemplo, textos com os títulos “Um perigo que preocupa todos os pais”, “Como proteger seus filhos” e “Faça de seu lar um abrigo seguro”.
Sem escolha
“Eu não tive escolha sobre entrar nessa seita ou não”, diz a cuidadora de idosos E. B., de 37 anos, que foi educada como testemunha de Jeová desde criança. Sua mãe era da religião e E.B. cresceu acreditando nos seus ensinamentos. “Eles falam muito do Armagedom, então você cresce morrendo de medo do fim do mundo. Também fazem um terror sobre as pessoas que são de fora, que eles chamam de ‘pessoas do mundo’, dizem que aqui fora você vai ser maltratado, que tudo é horrível, que as pessoas vão se aproveitar de você”, conta.
Dentro da igreja, os líderes são chamados de “anciãos”: são homens com cargos de liderança, não necessariamente idosos. “Eles são vistos como puros, respeitáveis, nunca que você vai imaginar que eles vão abusar de uma criança”, diz E.B.
Foi por isso que a mãe da menina confiou quando um ancião de uma das congregações de Testemunhas de Jeová de São José do Rio Preto pediu para levá-la para a sede da entidade na cidade, conta. Ela tinha 12 anos e iria ser questionada sobre a fé, como parte da preparação para seu batismo. As perguntas normalmente são feitas com várias crianças ao mesmo tempo. “Eu achei que quando a gente fosse chegar lá no salão ia ter mais gente, mas estava só eu e ele. Ele me levou sozinha para uma sala e trancou a porta”, diz.
Crime
“Ele começou a falar do meu corpo, falar que já fazia tempo que ele me notava, que ele percebia que eu não usava sutiã. Achei muito esquisito. Ele perguntou se eu já tinha tido relações, se eu já tinha visto um pênis. E começou a falar que o dele era maior que a média, e colocou para fora, mostrou pra mim.”
“Eu era uma criança, não sabia nada dessa parte sexual. Eu fiquei muito assustada, muito envergonhada. Mas ao mesmo tempo eu achava que aquilo fazia parte… Eu não estava entendendo. Achei que ele estivesse fazendo algum teste comigo.”
O homem então se colocou atrás da menina e começou a tocar nos seus seios e se esfregar nela, diz E.B. “Eu fiquei muito assustada, não sabia o que fazer. Disse que estava passando mal e fui para o banheiro. Fiquei um tempão lá, mas eu não tinha para onde fugir porque a porta estava trancada.”
E.B. conta que depois, no caminho de volta para a casa dela, o ancião tentou convencê-la a ir para a casa dele e tentou embriagá-la. “Depois disse que eu ‘tinha obrigado’ ele a ir se aliviar no banheiro. Eu era tão inocente que nem entendi o que ele quis dizer”, relata.
Acobertamento
E.B. diz que falou sobre o episódio para a mãe, apesar do abusador dizer a ela para não falar nada para ninguém. “Ela não falou nada para mim. Para ela, o que eles falavam era como se fosse Deus falando, então ela não confrontou ele.”
Quando ouviu que o mesmo homem havia “mexido” com outra pessoa no Salão do Reino (como são chamados os locais de encontro dos religiosos), E.B. resolveu contar para outros anciãos o que tinha se passado. “Eles ficaram bem desconcertados, mas falaram para eu deixar nas mãos de Jeová, que Jeová ia resolver esse assunto. Que era para eu orar, perdoar ele pelo que ele fez e que Deus consolasse meu coração” diz ela. “E ainda pediram para não comentar com mais ninguém porque ele tinha esposa e filha, porque isso podia virar caso de polícia e a gente evita que vire caso de polícia.”
A BBC News Brasil conversou com quatro ex-anciãos que afirmaram que a orientação da organização sempre foi para que todos que os líderes resolvessem os problemas entre membros internamente, aconselhando-os a não procurar as autoridades para evitar “vilipendiar” o nome da religião.
‘Justiça paralela’
Nos documentos oficiais da Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová, que tem sede nos EUA e tem diversas publicações e comunicados enviados para as filiais no mundo, há orientações explícitas para que anciãos resolvam quaisquer problemas entre membros internamente.
Como explicam esses documentos, pessoas acusadas de cometer crimes e irregularidades são julgadas por anciãos em uma reunião chamada ‘comissão judicativa’. Mas para que uma acusação gere uma comissão — incluindo casos de abuso sexual de crianças ou violência contra a mulher — é exigido que haja duas testemunhas. Tudo isso está detalhado no livro dos anciãos, que é acessível somente aos líderes e não é compartilhado com os outros fiéis.
“Anciãos não estão autorizados pelas Escrituras e tomar ação congregacional a menos que haja confissão ou duas testemunhas confiáveis”, diz trecho de uma carta de 2012 sobre abuso sexual enviadas pela sede para as filiais no mundo. Há nove cartas sobre o assunto datando desde 1992 — a carta de 2012 ordena as congregações a tirar do arquivo e destruir todas as cartas anteriores.
“São crimes que por sua natureza não têm testemunhas, e que precisam ser investigados pelas autoridades, que têm condições de fazê-lo”, afirma Celeste Santos, promotora do Ministério Público de São Paulo que investiga os casos. As cartas sobre pedofilia repassadas pela sede para as filiais dizem que é possível manter um abusador na congregação desde que ele tenha “se arrependido”.
“O departamento de serviço [jurídico] vai dar orientações quando uma comissão judicativa conclui que alguém culpado de abuso sexual de menores está arrependido e pode permanecer na congregação”, diz uma carta de 2016.
“Em 2015, depois de muitos escândalos, eles deram uma nova orientação da igreja para os anciãos não desencorajar pessoas que desejam buscar as autoridades. Mas na prática existe toda uma cultura de acobertamento que continuou”, afirma Eduardo*, que foi ancião até 2016.
A orientação oficial da organização para os anciãos hoje é que procurarem o escritório jurídico da igreja em caso de denúncias de abuso de menores. “Em alguns países, quem fica sabendo de um suposto caso de abuso de menores é obrigado por lei a denunciar o caso às autoridades”, diz a versão de 2019 do manual dos anciãos.
O ex-ancião Marcus Borges*, que deixou a religião no início de 2020, diz que “a prática de lidar com o caso internamente, sem levar às autoridades”, dura até hoje. “E essa exigência das testemunhas [para que a pessoa seja desligada] faz com que a maioria dos casos sejam ignorados”, diz ele.
Fonte: BBC News Brasil
Créditos: BBC News Brasil