O Cruzeiro conta os dias para comemorar o centenário da fundação – 2 de janeiro de 1921. Mas antes de olhar para o futuro, os olhos do clube seguem presos ao passado e seus desdobramentos. Na Série B, pela primeira vez, com punição de quitação de pontos pela Fifa, e com resultado financeiro em 2019 catastrófico, o clube ainda é alvo de investigações policiais e relatórios internos que evidenciam práticas que ferem leis e regulamentos.
Há um ano, o Fantástico denunciava indícios de irregularidades praticados pela antiga direção. Agora, as autoridades passaram a averiguar outro possível movimentação: a “rachadinha”. O esquema não tem tipificação criminal na esfera privada até o momento, no Brasil, mas é considerado imoral. No caso do Cruzeiro, pode ter desviado, segundo suspeita da Polícia, recursos que originalmente iriam para os cofres do clube.
No mesmo dia em que Sérgio Santos Rodrigues foi eleito presidente, o Ministério Público (que acompanha as atuações da Polícia Civil) informou os “crimes apurados” nas investigações: apropriação indébita, organização criminosa, falsificação de documentos, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Há um reforço na lista, porém.
Desde as denúncias de 26 de maio de 2019, mais de 50 testemunhas e pessoas ligadas à gestão do ex-presidente Wagner Pires de Sá prestaram depoimento às autoridades. Em julho do ano passado, uma operação de busca e apreensão em endereços do clube e de ex-dirigentes trouxe mais elementos às investigações, que correm sob sigilo.
Possível esquema
As suspeitas de prática de “rachadinha” estão em contratos de renovação, compra e venda de jogadores. Um dos documentos pedidos pela Polícia Civil ao Cruzeiro é o da venda do lateral Mayke ao Palmeiras, realizada em setembro de 2018. Pelo esquema, o clube pagaria comissões a intermediários e empresários de jogadores. Parte do dinheiro seria repassada aos ex-dirigentes envolvidos nas negociações.
A polícia também suspeita de rachadinha no contrato que a antiga gestão fez com o empresário Cristiano Richard. No ano passado, a reportagem do Fantástico mostrou que o clube negociou parte dos direitos econômicos de jogadores para pagar uma dívida com o empresário. Incluindo Estevão William, o Messinho, hoje com 13 anos e um dos principais talentos da base cruzeirense.
A Lei Pelé (Lei nº 9.615) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbem negociação de menores de idade. A investigação continua na CBF, pela cessão de direitos econômicos a pessoa física (já que a Fifa só permite que clubes e os próprios jogadores tenham esses direitos) e na Polícia Civil, que apura se parte do dinheiro pago a Cristiano Richard teria sido repassado no esquema de “rachadinha” a Sergio Nonato, então diretor geral do clube, e a Itair Machado, vice-presidente de futebol à época.
– As investigações estão sendo conduzidas pela 1ª Delegacia Especializada em Investigação de Fraudes, com acompanhamento do Ministério Público. O inquérito policial já possui mais de 1.500 folhas, já foram ouvidas mais de 50 pessoas, e dentre as diversas diligências realizadas, ocorre análise de vasta documentação pelos investigadores e peritos que também atuam no caso – comenta o Domiciano Monteiro, chefe da Divisão Especializada em Investigação de Fraudes da Polícia Civil.
O ex-vice-presidente de futebol, ovacionado por jogadores na comemoração da conquista do Campeonato Mineiro de 2019, é um dos principais alvos da investigação policial. Ele e Serginho Nonato se defenderam em relação ao envolvimento no contrato com Cristiano Richard.
Itair: “Sobre o empréstimo ao Cruzeiro feito pela pessoa do senhor Cristiano Richard no valor de R$ 2 milhões, a Polícia tem a entrada do dinheiro na conta do clube e tem a saída do dinheiro, será comprovado que é mais uma falácia para denegrir minha imagem. Fui e estou sendo vítima de uma briga política e poder de um clube que já estava em dificuldades financeiras”.
Serginho: “Assinar como testemunha, nos contratos, foi toda extensão do meu ato. Cristiano é uma pessoa conhecida e do meu relacionamento. Nunca recebi benefício financeiro de qualquer contrato realizado no Cruzeiro”.
A conclusão do inquérito será em breve, mas isso não significa que as investigações serão encerradas. Como o próprio nome da operação diz, foi só o “Primeiro Tempo”.
A expectativa das autoridades é que, com a entrega de informações e documentos apurados pelo próprio Cruzeiro, seja possível a conclusão, ainda que parcial das investigações, com adoção de algumas providências, sem prejuízo da continuidade das apurações em relação a alguns fatos específicos que mereçam maior demanda de tempo.
– As investigações se encontram em estágio avançado, tendo sido ouvidas muitas pessoas. Nesse período da pandemia do coronavírus, com a suspensão da possibilidade de novas oitivas, ou mesmo limitação em relação a isso, está sendo intensificado o trabalho de análise de dados e documentos apreendidos pela Polícia, e outros já recebidos pelas instituições – diz o promotor de justiça Daniel de Sá Rodrigues.
Crise política, administrativa e em campo
Depois de um ano de investigações no Cruzeiro, ninguém foi denunciado, julgado ou preso. Por enquanto, só o clube e a torcida foram punidos. A crise nos bastidores virou inédito rebaixamento na história celeste. E o Cruzeiro vai começar a Série B (ainda sem previsão de início) com menos seis pontos, correndo o risco de perder a mesma quantidade se não quitar R$ 11 milhões na Fifa até a próxima sexta-feira.
Os cofres que pareciam cheios pra contratar grandes jogadores nas gestões dos ex-presidentes Gilvan de Pinho Tavares e Wagner Pires de Sá ficaram vazios. O conselho gestor, que administrou o clube nos últimos cinco meses, depois da renúncia da antiga diretoria, não conseguiu honrar a dívida de 850 mil euros com o Al Wahda (empréstimo do volante Denilson em 2016). Veio a punição fatal que coloca o Cruzeiro na lanterna da segunda divisão, antes mesmo do pontapé inicial do torneio.
“A gente ainda tava fazendo todas as tentativas junto ao clube credor, no sentido ainda de fazer um parcelamento. Mas nós não conseguimos levantar o dinheiro” (Saulo Fróes, presidente do conselho gestor)
O Cruzeiro ganhou novo prazo, de cinco meses, pra pagar o que deve. Se der mais um calote, pode ser rebaixado à Série C do Campeonato Brasileiro. Mesma ameaça que paira a Raposa na questão envolvendo a dívida com o Zorya FC, da Ucrânia, relativa à compra do atacante Willian Bigode (hoje no Palmeiras).
R$ 1 milhão de prejuízo, por dia, em média
O balanço de 2019, publicado pelo clube na quarta-feira, ajuda a entender toda a turbulência vivida pelo Cruzeiro nos últimos meses. A dívida total ultrapassa R$ 800 milhões. Só no ano passado, o déficit foi de R$ 394 milhões. Representa R$ 1.079.728,69 de prejuízo a cada dia, em média.
– Eu tenho no meu arquivo cerca 600 balanços financeiros de clube do Brasil inteiro, o mais antigo é do São Paulo de 1943… Eu nunca vi um algo tão ruim, tão assustador, tão pavoroso quanto o do Cruzeiro de 2019 – diz o jornalista Rodrigo Capelo.
“O buraco que enfiaram o Cruzeiro no ano passado é incomparável em relação a qualquer outro envolvendo clubes de futebol no Brasil” (Rodrigo Capelo)
Uma empresa de investigação administrativa foi contratada pelo conselho gestor. O relatório aponta possíveis irregularidades cometidas na gestão do ex-presidente Wagner Pires de Sá. Entre os mais de R$ 80 mil reais gastos com os cartões corporativos do clube, entre 2018 e 2019… Chama atenção uma despesa realizada em casa de entretenimento adulto, na cidade do Porto, em Portugal, em maio de 2018.
A conta: 565 euros, ou R$ 2.600 na época. Nas redes sociais, fotos mostram shows, eventos com dança e festas no local. No registro, a Bónusmelodia Unipessoal LTDA tem como atividade principal “estabelecimento de bebidas com espaço de dança”. O ex-presidente Wagner Pires de Sá justificou a despesa.
Esporte Espetacular: Esses gastos foram só com comida?
Wagner Pires: Só comida, só comida. Se fosse mesmo um negócio no exterior, isso ai, pelo que eles falam, fica parecendo que é casa de negócio. Uma mulher lá é mil dólar, 2 mil dólares (risos)…
“O que o clube quer amplamente, neste momento, é o ressarcimento de tudo que foi, de forma indevida, retirado dos cofres do clube” (Kris Brettas, superintendente jurídico do Cruzeiro)
A má gestão levou o Cruzeiro a perder jogadores. Com atrasos nos salários, seis atletas buscaram a Justiça pra deixar o clube. Entre eles, o goleiro Rafael, que se acertou com o Atlético-MG, o meia-atacante Thiago Neves, que foi contratado pelo Grêmio; e o atacante Fred, com liminar favorável e em vias de acerto no Fluminense.
A coleção de processos é grande. Membros da comissão de Mano Menezes, Rogério Ceni e Abel Braga entraram com ação trabalhista. Nessa semana, o próprio Mano acionou o clube pra cobrar um dívida de mais de R$ 5 milhões. Pra enxugar os gastos, 110 pessoas pessoas foram demitidas.
Fonte: Globo Esporte
Créditos: Polêmica Paraíba