O mito de barro, que foi inflado

Gilvan Freire

Parece não haver justificativa para considerar inflável uma peça de barro. Via de regra um artefato de argila tem forma estática, a menos que, sob tensões da temperatura, possa aumentar ou diminuir.

O mito de barro é diferente. Ele é fruto da imaginação do povo, da crendice popular. Tem o tamanho que a invencionice quer. E são inúmeros. Vindos da Grécia primitiva, em sua maior parte, foram considerados e adorados como deuses. Mas, na medida em que a humanidade foi aumentando e se diversificando geopoliticamente, e ampliando seus conhecimentos, os mitos foram morrendo. Hoje, existem apenas na literatura, nas artes, na poesia, e ainda são evocados pelos grandes oradores. Não têm mais sentido religioso, mas ornam as palavras, a que dão mágica e feitiço. Mesmo mortos e sepultados ao longo de milênios, os mitos resistem no imaginário coletivo e, às vezes, se expressam em forma humana, de tal maneira as atitudes de algumas pessoas impressionam o povo. Nos últimos tempos de nossa História Contemporânea (esse período da história parte de 1789 d.C.), são milhões de mitos humanos inventados pelo povo no mundo inteiro. Ou por conta de fatos notáveis produzidos por gênios da raça em diversas atividades, em certo tempo, ou por causa da manipulação da opinião pública, de onde saem lideres e gênios inventados ao sabor e fragor dos momentos e das tensões sociais. A fábrica de mitos não para.

É como se a humanidade toda se reunisse e decretasse: ‘temos de recriar os mitos, porque eles são uma necessidade do espírito humano’ – não bastasse existir Deus, o único mito real explicável. ‘Ainda que sejam de barro’ – teria sugerido alguém deprimido porque não tem um mito dentro de si.

Próximo de nós os mortais da terra, cria-se mito a toda hora, em todo lugar. Há uma mitomania, talvez decorrente das carências espirituais acumuladas desde os gregos longícuos. Criamos os mitos de estimação ocasional por assim dizer. Mas por que nossos mitos inventados são tão frágeis? É somente porque são criados como obra de ficção, quase todos, e esculpidos pelo nosso imaginário carente de líderes, também chamados ‘ícones’ – o substituto do mito (ou um ser concorrente): pessoa cheia de virtudes e capacidades referenciais de uma época. Em verdade, mitos pequenos, minimitos.

Ricardo Coutinho, por causa de uma baixa e frágil cultura política praticada na Paraíba nesses últimos tempos, entrou na fase cerâmica da modelagem do mito de barro, uma réplica de mito que a população exige de si mesma quando não acha em seus líderes os referenciais de conduta e virtudes políticas. Coisa que só aconteceu porque os ícones anteriores do povo começaram a se digladiar e se matar, um tentando exterminar o outro para não ter que dividir o PODER – a fábrica de mitos deusificados que está habituada a engolir também os próprios deuses que inventa.

Pensando bem, por que RC, o mito recriado, teria decepcionado e frustrado a tantos?

Quando RC ganhou a prefeitura, a primeira coisa que lhe veio a mente foi: eu preciso matar Cícero para sobreviver. Pensou ele. O manual da mitomania pede que haja esses sacrifícios de morte. É o mesmo ritual de tempos anteriores quando a cultura política era baixa e frágil. Nada mudou, a não ser o fato de que o morto de RC sobreviveu. Agora virou assombração. E, será possível matá-lo de novo, assim como morrem os mitos e depois reaparecem?

Criado o mito Ricardo – uma obra artesã tecida por muitas mãos ansiosas para construir pelo menos um ícone -, o que sobra é uma experiência malograda. Mas é isso mesmo em que dá conceber um mito de barro, inflados pelo poder, que queria matar os seus contrários somente para que sobrevivesse a mitologia.