A maioria das pessoas tem a proibição das drogas como natural, como se a cannabis, por exemplo, fosse sempre algo proibido, e não tivesse uma história milenar de uso, inclusive medicinal, antes de os EUA começarem uma cruzada contra a planta, cheia de preconceito e xenofobia, na década de 30 do século passado.
A proibição da maconha ingressou nos tratados e convenções internacionais, depois nas leis nacionais, de uma forma artificial, forjada por interesses políticos escusos, sem qualquer estudo científico ou consulta popular, até ser naturalizada como está hoje e ninguém se perguntar como tudo isso aconteceu.
Falo sobre esse trajeto da proibição no meu livro “O direito penal da guerra às drogas”, de como foi feita essa imposição, até termos uma regra comum a todos os países sem que se respeitassem condições locais ou o interesse da população.
Ocorre que para que a proibição das drogas entrasse no mundo do direito penal, era necessário que se estabelecesse um bem jurídico. Sim, um bem que coubesse ao direito proteger. Aliás, não um bem qualquer, porque para atuar o direito penal há que ser um bem de extrema relevância, pois, caso contrário, os demais direitos, civil, administrativo ou tributário, podem e devem dar conta.
Não pode haver crime se a conduta que se quer criminalizar não causa nenhum dano ou ameaça de dano. Foi então que as pessoas que forjaram o crime de uso e comércio de drogas tiveram a grande ideia de dizer que o bem jurídico protegido pelo direito, no caso dessas condutas, seria a saúde pública.
Sim, meu caro leitor, quando uma pessoa é presa porque está com três ou quatro trouxinhas de maconha ela é presa porque, pela lei, violou ou ameaçou a saúde pública. O crime de vender maconha é crime contra a saúde pública, e só é crime porque há esse bem jurídico que o legislador entendeu proteger.
Por óbvio que a proibição causou um sem-número de danos à sociedade, danos muito maiores do que o uso de qualquer substância proibida. A proibição fez nascer o tráfico, a violência ligada ao tráfico e a criação de várias outras substâncias elaboradas pela mente fértil do mercado paralelo. Ou seja, muito do que você pensa que está sendo combatido com a proibição é causado pela própria proibição, não pelas drogas em si.
O que sustenta juridicamente a proibição da maconha e das demais drogas, então, não é a violência que você vê nas notícias de jornais, mas a necessidade, segundo o legislador, de se proteger a saúde pública.
De princípio o absurdo é bem evidente, um absurdo que só não vemos porque nos acostumamos com absurdos. Prender uma pessoa com alguns pacotes de maconha para proteger a saúde pública em uma penitenciária imunda, suja, cheia da ratos e baratas, já é um contrassenso enorme.
Além disso, nossa previdência, nossos hospitais abandonados e sem serviços adequados, pessoas em filas para serem atendidas, tudo isso demonstra o descaso do próprio Estado para com a saúde pública. Qual a legitimidade então teria o Estado para prender uma pessoa em nome da saúde pública, e prender em um local que é o próprio desrespeito à saúde pública?
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Pois bem, estamos frente a uma pandemia a respeito da qual desconhecemos a amplitude, o quanto ela causará de danos, de mortes, na população brasileira, mas sabemos que nossos hospitais não estão aparelhados suficientemente para suportar metade da demanda se os danos forem ao menos 50% do que foram na Itália.
Não podemos condenar e encarcerar o vírus, como não podemos, neste momento, procurar culpados no Estado no que se refere ao descaso para com a saúde pública, até porque é um descaso histórico, mas escrevo a título de reflexão, a título do que estamos e não estamos fazendo em nome da saúde pública.
O encarceramento de milhões de jovens por causa de uma planta, em nome da saúde pública, só viola, só agrava a própria saúde pública, superlotando prisões, favorecendo a disseminação de doenças que proliferam nas celas cheias de mofo dessas nossas prisões brasileiras carentes quase completamente de assistência médica ou sanitária.
O Coronavírus nos colocou em um momento de extrema gravidade em que o isolamento social é necessário, em nome da saúde pública, mas a prisão é aglomeramento social, impossível se fazer qualquer isolamento. Assim, repito, que legitimidade tem o Estado de matar essas pessoas em nome da saúde pública?
O Conselho Nacional de Justiça baixou uma recomendação para que pessoas enquadradas nos grupos de risco sejam mandadas para prisão domiciliar. Nada mais justo, uma redução de danos pensada pelo Estado que é o próprio causador do dano, mas isso não é tudo, precisamos pensar o que estamos fazendo em termos de saúde pública.
Nossos policiais estão na rua sem qualquer proteção, voltam para casa e têm contato com seus pais, avós e filhos. Nossos policiais, seus familiares, não merecem morrer. Pior ainda o agente penitenciário, que pode ser o condutor do vírus entre a sociedade e o sistema penitenciário. Qual segurança o Estado está dando, em termos de máscara, luvas, local de higienização, para os agentes penitenciários? Nenhuma.
Chegamos ao cúmulo da possibilidade da seguinte situação: o policial vai prender um cidadão com maconha e o vírus se transmite entre eles, o policial leva o vírus para os seus familiares, o preso leva o vírus para o sistema penitenciário, de onde o agente penitenciário leva também para os seus próprios familiares e de volta para a sociedade, tudo isso em nome da saúde pública.
Bem, no mundo do absurdo criado com a proibição tudo é possível e ninguém percebe o caos e a irracionalidade. De qualquer forma, este texto foi escrito para lembrar que a maconha só é proibida porque dizem que a sua comercialização ameaça a saúde pública, e esta é a ocasião ideal para a gente pensar, refletir, sobre o que estamos fazendo em nome da e com a saúde pública.
Luís Carlos Valois – Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal pela USP, pós-doutorando na Alemanha.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba
Fonte: Jornal GGN
Créditos: Jornal GGN