'Uma estrela que não se apaga'

Ação cultural de João Azevedo é destaque na Carta Capital, já nas bancas - CONFIRA MATÉRIA

Paraíba celebra o ano cultural de Sivuca, maestro que impôs a sanfona do sertão às salas de concertos

 

O maestro, compositor, arranjador, cantor, sanfoneiro, orquestrador e multi-instrumentista paraibano Sivuca (1930-2006) tocou de tudo, de modinha francesa a arrasta-pé, de frevo a baião, do jazz ao forró, de feira livre a cabelo de milho. Ampliou as fronteiras do acordeom, colocando a partitura no fole, em vez de deixar o fole resignado a ser apenas um instrumento responsivo. A amplificação de mundos que Severino Dias de Oliveira, o Sivuca, trouxe à música brasileira vai voltar a ecoar fundo este ano no sertão. O estado da Paraíba decretou o Ano Sivuca para homenagear neste 2020 um dos seus mais ilustres cidadãos, que completaria 90 anos em maio.

A festa começa nos dias 1º, 2 e 3 de maio, na terra natal do músico, Itabaiana (a 70 quilômetros de João Pessoa). Sivuca nasceu em 26 de maio de 1930 num distrito rural, Pernambuquinho. A segunda edição do Festival de Jazz & Blues Sivuca será inteiramente dedicada a celebrar a música do prodígio albino que lhe dá nome. O diretor da mostra, Edglês Gonçalves, planeja colocar no palco Toninho Ferragutti, Hermeto Paschoal e o maestro Rodolf Forte. Quer convidar também a SpokFrevo Orquestra, de Pernambuco, o delicado trio Baião de Três e o Quarteto de Cordas da Paraíba. O instrumentista Lucas Tadeu recriará no palco todas as peças do disco Enfim, Solo, clássico de Sivuca de 1997, sob supervisão da médica e compositora Glorinha Gadelha, viúva de Sivuca.

Nos anos 1930, quando nasceu Sivuca, conta Gonçalves, Itabaiana vivia uma farra de retretas musicais nas praças e nos folguedos populares, frente musical organizada pela então União Operária dos Artistas. Tocavam jazz e blues, e foi nesse ambiente que o autodidata Sivuca cresceu, daí o nome da mostra. “Sivuca dizia que a música tinha para ele o sentido da materialização da memória”, disse Glorinha Gadelha durante recente festival de cinema na Paraíba. Em Itabaiana, os discípulos do sanfoneiro se organizaram em uma ocupação social numa antiga fábrica de derivados de milho repaginada, a Taberna Cultural. Dali espraiam os saraus que festejam o compositor, que tem a Praça Epitácio Pessoa como palco central. Também organizam o Palco Circulatório Sivuca, para tocar nas comunidades carentes da região.

Sivuca, que aprendeu arranjo e composição com o maestro e musicólogo fluminense Guerra-Peixe, é responsável pelo arranjo da canção Pata Pata, da cantora sul-africana Miriam Makeba, com quem excursionou pela Europa (assim como nos Estados Unidos, com Betty Midler, Harry Belafonte e Paul Simon, entre outros).

De volta a Itabaiana, abria sua residência para receber músicos e admiradores, expandindo sua produção para novas gerações, como as de Waldonys e Mestrinho. “Quando Sivuca morreu, Hermeto disse que ele era ‘irmão de som e cor’. Hermeto também compara a música às cores. Albinos, espalharam cor pelo mundo. E também botaram fogo no mundo, conforme o nome de um grupo que formaram no início da carreira”, lembrou o escritor Vitor Nuzzi, que escreve a biografia de Hermeto Paschoal, alma gêmea do itabaiano. “O paraibano Sivuca com aquele som talvez mais melódico, mais da terra. E o alagoano Hermeto experimentando, provando de tudo, quebrando tudo, até chegar no que ele chama de música universal.”

As composições de Sivuca articulam uma consolidação da cultura brasileira no escopo geral da música do mundo. A feira livre vibra com sua profusão de barulhos e sinfonias em Feira de Mangaio; o Nordeste baila ao som de Adeus, Maria Fulô e Cabelo de Milho. Sivuca é o compositor de João e Maria, que ganhou letra de Chico Buarque décadas depois da melodia composta por ele. “Até Sivuca, o acordeom ainda era visto como um instrumento bastardo, voltado unicamente para a música popular”, pondera Edglê. A música, segundo ele, tinha o sentido de materialização da memória.

“Elevou o nome do nosso estado e da cultura nordestina, fazendo-os conhecidos não só no Brasil, mas nas salas de concerto do mundo, uma prova de que sua intimidade singular com a sanfona transitava do erudito ao popular com uma incrível maestria e domínio”, diz o atual governador da Paraíba, João Azevêdo, que promete eventos com a música de Sivuca para os 300 mil alunos da rede pública do estado.

“Seu legado não apenas ensina, mas emociona e precisa ser conhecido e preservado”, afirmou Azevêdo.

O clima é de festa, mas também incita à luta. Há anos Glorinha Gadelha tenta erguer um museu e um memorial para o velho companheiro, infrutiferamente. O interesse das instituições é sazonal. Quando era ministro da Cultura, Juca Ferreira tentou criar centros de referência e memória das principais expressões da música popular de cada estado. Tinha em mente nomes como Sivuca, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Clube da Esquina. Um dos primeiros que receberam o aporte foi a Paraíba, para criar o Memorial Sivuca. O dinheiro federal saiu, mas não as contrapartidas locais (estado e prefeitura), e o centro não saiu. “Para que isso virasse realidade era preciso que a ministra que me substituiu desse continuidade e, claro, precisava da cumplicidade local”, diz hoje Juca Ferreira. “Só Luiz Gonzaga foi adiante e, ainda assim, parcialmente”, lamenta. Quem sabe não tenha chegado a hora de Sivuca. •

Fonte: Carta Capital
Créditos: Por Jotabê Medeiros