Um detalhe na vida de Tiago (Pedro Guilherme Rodrigues) e da advogada Vitória (Taís Araújo) em “Amor de Mãe” passa quase despercebido em meio à trama: o menino, que foi adotado por ela — que não conseguia engravidar, mas queria exercer a maternidade —, havia sido devolvido para o abrigo antes de sua mãe conhecê-lo.
A realidade de crianças devolvidas após adoção é conflituosa, por envolver aspectos emocionais e práticos em medidas imensuráveis. É um processo burocrático, respaldado por agentes públicos do Judiciário, entre eles, promotores e psicólogos, que estão ali para defender os direitos da criança, mas também para facilitar a inserção dela em um novo lar.
Quando não dá certo, voltar à instituição gera uma “reedição do abandono” para o adotado, define a psicanalista Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi, autora do livro “Devolução de crianças adotadas – Um estudo psicanalítico” (Primavera Editorial).
A criança pode viver situações ligadas a primeira situação do rompimento da família biológica. E reeditar esse abandono. Com isso, pode desenvolver uma sensibilidade para formar novos vínculos.
Casos de devolução: por que acontecem?
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedidos por Universa, 73 adoções foram canceladas entre 1º de agosto de 2019 e 13 de janeiro deste ano. Os motivos oficiais, segundo o órgão, contemplam “devoluções, falecimento (do pretendente ou da criança) e evasão da criança”. Não há informações sobre a motivação das devoluções. No mesmo período, 746 adoções foram concluídas.
Com experiência de pelo menos 25 anos na área, Maria Luiza aposta em um padrão de comportamento dos pretendentes nos processos de adoção que pode contribuir para os casos em que a criança retorna à instituição que a abrigava: os casais adotantes quase sempre tentam simular uma família biológica ao entrarem na fila do Cadastro Nacional de Adoção.
“Temos esse padrão cultural no Brasil: os pais querem reproduzir o modelo de uma família biológica, inclusive querendo criar uma criança desde pequena”, pontua.
A psicanalista explica que, por vezes, os adotantes querem espelhos de quem são. Com isso, até mesmo preconceitos relacionados à raça e ao gênero das crianças e adolescentes podem complicar a relação entre as duas partes.
“Há famílias e culturas que adotam mais meninas do que meninos, por exemplo, porque acham que é mais fácil aceitar uma filha, já que, na cabeça deles, o menino é que deveria vir com o sobrenome da família desde o nascimento. Há essa aposta no gênero masculino, por exemplo”.
Há camadas mais e menos profundas entre as motivações, diz a psicanalista. Adotantes podem querer devolver a criança tanto por questões mais aparentes, como não se adaptar à idade da dela, tanto por motivos inconscientes.
“É quando os adotantes têm uma expectativa extremamente elevada, e a criança não corresponde. Ela vem com sua história, mas os pais acham que ela chegou para solucionar a vida, tapar o buraco que estão sentindo”, comenta. “É uma idealização, e realmente a pessoa pode ficar muito inflexível se vier algo diferente do que ela espera”.
A promotora Mirella De Carvalho Bauzys Monteiro, do Ministério Público de São Paulo, já acompanhou três processos em que a criança foi devolvida pela família, em sete anos de atuação na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude. Todos aconteceram no período conhecido como estágio de convivência, que é quando os adotantes e o adotado convivem por 90 dias (prorrogáveis por mais 90).
Esse tempo é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Um dos pormenores que dispensam esse estágio é se a criança ou adolescente “já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo”, diz o documento.
Os momentos antes da adoção: expectativas e questões
De acordo com Mirella, a fase pré-adoção é cercada de expectativas dos dois lados, especialmente durante o estágio de convivência. Por essa razão, a equipe do sistema judiciário, composta por assistentes sociais e psicólogos, oferece preparo psicológico e emocional para todos os envolvidos no processo.
O suporte emocional é para que os pais não pensem, entre outras abordagens, que o estágio de convivência é um tempo que eles têm para se arrepender da escolha da criança.
“Sempre orientamos que não é o momento de os adotantes analisarem a criança como um produto, mas para verificar a convivência, estabelecer vínculos, gerar afetividade. Não é para ver se vai dar certo, porque isso pode gerar traumas na criança”, explica a promotora.
“É uma coisa complexa, por isso, contamos com a ajuda da sociedade civil, grupos de quem já adotou ou vai adotar para que histórias sejam compartilhadas”.
Maria Luiza reitera que, infelizmente, a devolução não se restringe ao período de convivência, como apontam os dados do CNJ. “Já peguei casos em que a criança tinha sido adotada com 5 anos e devolvida na adolescência”, explica.
Em qualquer que seja o momento do retorno ao abrigo, avalia a psicanalista, há um saldo emocional para quem seria adotado. “Isso porque ele investiu nessa possibilidade de ser querido, de ser aceito pelo adotante. Quando não dá certo, realmente se sente rejeitado”.
Adotados, eles fazem “teste de paciência”
Em um dos casos que acompanhou, Mirella conta que a menina, então com 7 anos, passou por três famílias até ser acolhida por sua atual família.
“Ela era fofinha e comportada no acolhimento, mas quando chegava o estágio de convivência, ela testava o amor familiar. Tinha um comportamento desafiador. Somente com o acompanhamento de uma psicóloga, é que entendemos que ela se autoboicotava”.
O preparo do núcleo familiar com apoio do Judiciário, diz a promotora, foi fundamental. “Eles foram preparados para isso. Foi quando ela se sentiu segura no que sentiam por ela”.
A psicanalista pondera que esse comportamento é esperado de crianças maiores e, geralmente, passageiro. “Quando uma tem medo de se ligar afetivamente, testa limites e quer saber se aqueles adultos de fato a querem de verdade, se a amam”.
O que acontece com quem devolve?
Mirella conta que caso a devolução aconteça após o processo de adoção ser efetivado, o Conselho Tutelar é acionado para lidar com a situação familiar. Se há maus tratos ou violência, a criança é retirada imediatamente do núcleo. “Em outros casos, é feita uma análise de contexto”, diz.
As autoridades podem, também, avaliar quais foram os aspectos emocionais e psicológicos do adotado que podem ter sido comprometidos. Há precedentes de indenização paga pelos adotantes, além de processos por danos morais. “É perceber, por exemplo, se já se chamavam de pai e filho. Em cada caso, há uma consequência, inclusive, na esfera judicial: os adultos podem ser indenizados por danos morais ou materiais, pagando até o tratamento psicológico e pensão alimentícia à criança ou ao adolescente”.
Vale dizer que, de acordo com consulta ao CNA, o Brasil conta com 46.070 pretendentes cadastrados e 9.404 crianças e adolescentes cadastrados para adoção.
Fonte: Universa
Créditos: Universa