Deus, se existisse, estaria vendo vocês agora boquiabertos com o neonazismo vintage do vídeo-encenação. Ali, ao centro, está Alvim, interpretando Goebbels. “A arte da próxima década será heroica e será nacional, ou então não será nada”, plagia Alvim. Acima dele, Bolsonaro interpreta seu herói, Ustra. Pensou que eu escreveria outra coisa? Não escreverei, mas deixo subentendido.
Ao fundo, o prelúdio da ópera de Wagner confere dramaticidade antissemita à sonoplastia teatral, curiosamente nada brasileira, tampouco heroica. Ao lado de Alvim-Goebbels, o cenógrafo colocou uma cruz missioneira, trazida pelos jesuítas ao Brasil no século 17. Ou extermínio ou a escravidão por “guerra justa” ou a catequização nos lembram o símbolo. Oprimir “negros da terra”: nada mais brasileiro.
Falta alguém na peça dirigida e estrelada por Alvim. Onde nós, os espectadores, estamos nessa cena? Cinicamente surpresos, me parece. Num país fundado em racismo e que o reproduz diariamente,
fingir surpresa com o teatro nazista é praticar cinismo num momento em que dizer a verdade sobre nós mesmos seria mais adequado.
Lembro aqui da peça “O Espectador Condenado à Morte” de 1992, escrita pelo dramaturgo romeno Matéi Visniec. A peça toda é o julgamento do espectador. Promotor, defensor, juiz e diversas testemunhas se intercalam numa peça deliciosamente angustiante na qual o único objetivo é condenar
o espectador à revelia.
Deus está nos vendo, os espectadores, fingir espanto diante da obra nazista. Até parece que, na última quinta (16), Andreza Delgado não era arrastada pelos cabelos pela Polícia Militar. Estampou duas vezes na mesma semana a capa da Folha, a primeira como ensaísta brilhante, a outra em foto no chão com um PM em cima dela. Não é uma aberração, é política pública: detenção em massa, abordagem a jornalistas, policiais sem identificação.
Como espectadores, temos a ausência de defensores públicos no último protesto.
Temos o povo do “mercado não tem posição política.” Temos eu e você, os que pensam que o fascismo virá caricato, de uma vez só, como no vídeo-peça, como fascistas em Roma em outubro de 1922. Não virá.
O perigo do fascismo reside em normalizar suas expressões cotidianas quando a defesa de um passado mítico inexistente, o anti-intelectualismo e teorias da conspiração passam diante dos nossos olhos, nos alerta Jason Stanley em “How Fascism Works”. Democracia sabe viver muito bem como violência, nos lembra Achille Mbembe em “Políticas da Inimizade” (2017). São as Andrezas, as Pretas Ferreiras, as Marielles, as Ágathas que nos chamam a não normalizar o fascismo.
Dramaturgo encenado em 2014 em peça dirigida, quem diria, por Regina Duarte, Visniec foi banido de seu país pela ditadura socialista, partindo para o asilo político em Paris em 1987.
À Folha disse em 2016: “O poder não tinha tanto medo de um cidadão que lesse uma obra contestadora sozinho em sua casa. Já o teatro era mais perigoso: a emoção coletiva suscitada por uma peça poderia descambar para a revolta.” É por isso que cai Alvim, mas não cai o projeto cultural policialesco e
totalitário que ele anunciou.
E é por isso que nos espantamos, sem deixar de nos enxergarmos como espectadores de uma peça.
“Senhor acusado, eu lhe conjuro, é muito importante poder, pelo menos uma vez na vida, chamar as coisas pelo nome”, clama o Defensor em “O Espectador Condenado à Morte”. Façamos do espanto boquiaberto uma oportunidade de reconhecer o racismo, aqui incluído o antissemitismo, fundante da nossa nação. Bem brasileiro, nada heroico.
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Thiago Amparo