“Tinha 18 anos quando fui expulsa de casa. Naquele dia, minha mãe disse que preferia me ver morta do que fora da religião dela.”
Essa foi apenas uma das ofensas que Lilian Pessoa, que hoje tem 37 anos, ouviu da família durante o tempo em que conviveu com os parentes.
A mãe e o padrasto são membros da religião Testemunhas de Jeová e, desde a infância, ela também participava do grupo. O cenário mudou na adolescência: após desobedecer uma das normas, a de não ter relações sexuais antes do casamento, Lilian foi expulsa. Com isso, o casal preferiu deixá-la desabrigada a conviver diariamente com alguém que julgavam como impura. A última vez em que tentou contato com eles foi em 2006, sem sucesso.
Mundialmente, as Testemunhas de Jeová são conhecidas por sua conduta rígida: no site oficial, é recomendado que os seguidores se vistam de maneira “modesta” e “evitem roupas justas ou largas a ponto de mostrarem demais”. Os seguidores não comemoram aniversários e, apesar de seguirem a bíblia, também rejeitam o Natal, por considerarem a origem das datas pagã. Uma das diretrizes mais polêmicas é não aceitar transfusão de sangue, uma vez que isso iria “contra as vontades de Deus”.
Outra das recomendações é cortar os laços com aqueles que deixaram de seguir os preceitos. Uma das páginas dos site orienta os membros a deixar até de cumprimentar os chamados “desassociados”.
Mas, quando se trata de parentes que moram na mesma casa, as diretrizes do site não são tão claras: “As atividades e os tratos normais do dia a dia podem continuar. Contudo, pelo seu proceder, o desassociado escolheu romper o vínculo espiritual que tinha com a família”, diz o texto.
Não é difícil encontrar ex-membros do grupo que foram expulsos de casa ainda na juventude. Ao redor do mundo, grupos de apoio se formam para acolher essas pessoas. A seguir, mulheres contam as dificuldades pelas quais passaram por terem sido rejeitadas por suas famílias:
“Jogou minhas coisas na rua”
“Quando tinha dois anos, minha mãe começou a frequentar a religião. Por causa disso, fui uma participante ativa desde a infância. Aos dez, fui batizada e passei a assumir mais responsabilidades dentro do grupo. Todos os sábados, precisava fazer o serviço de bater de porta em porta, chamando as pessoas para conversar.
Conforme fui crescendo, fui me irritando com essa obrigação, mas continuava fazendo porque sabia que era importante para a minha mãe. Porém, minha vida virou um inferno quando comecei a namorar um rapaz, aos 17 anos. Como ele não pertencia à religião, passei a ser tratada de forma diferente pelos demais, pois estava fazendo algo que ia contra as regras.
Em casa, também senti a diferença na convivência. Tudo o que fazia era errado, tinha algum defeito. Mesmo assim, continuei com o relacionamento. Até que tivemos relações sexuais, o que não é permitido antes do casamento. O sentimento de culpa em mim foi muito grande, então contei para minha mãe. Tudo piorou: ela escondia algumas comidas e dizia aos meus irmãos que eu não era merecedora delas, além de delegar as funções domésticas todas para mim.
Até que um dia procurou os anciãos do grupo e contou o que eu tinha feito. Fui obrigada a passar por uma espécie de julgamento: no ritual, a pessoa deve dizer o que fez de errado, entrando em detalhes. Em seguida, as autoridades decidem a punição. No meu caso, fui expulsa.
Depois disso, se eu encontrava um conhecido de lá na rua, ele atravessava a calçada. Minha mãe também deixou de falar comigo. Quando fazia, era para implicar com algo. Na época, eu trabalhava como empregada doméstica e estudava radiologia. Sentia que estava sendo muito injustiçada, pois não estava fazendo nada de errado. Um dia, depois de voltar do trabalho, tivemos uma briga e ela veio para cima de mim. Meu pai, que não era frequentador, mas não fazia oposição a ela, nos separou. Não demorou, ela jogou meus pertences na rua e disse que não tinha mais espaço para mim ali.
Fiquei tão revoltada que chamei a polícia. Entrei novamente na casa, peguei o restante das minhas coisas e não sabia o que fazer e nem para onde ir. Acabei ligando para o meu namorado e a família dele, que também era religiosa, me acolheu em casa. Por pressão deles, nos casamos. Na época, estava com 22 anos. Mas a situação toda fez com que começássemos a nos estranhar. Não nos dávamos mais tão bem. Acabamos nos separando logo em seguida.
Depois disso, por intermédio da minha ex-sogra, voltei a morar na casa da minha mãe. Ainda não ganhava o suficiente com as faxinas para pagar um aluguel. Não demorou, nos desentendemos novamente pela pressão que ela fazia para que eu voltasse a frequentar as reuniões religiosas. A situação só mudou quando uma vizinha ofereceu um quarto para que eu alugasse por um preço baixo. Dali, consegui me reestruturar. Fui trabalhar na área da saúde, conheci um rapaz, me casei e temos dois filhos.
Ainda tenho contato com a minha família, mas tudo é difícil. Minha mãe não desiste de persuadir e até chantagear, tanto eu quanto os meus irmãos, para voltarmos a frequentar as reuniões do grupo. Por causa disso, passamos períodos longos sem nos falar. Apesar de ter conseguido organizar minha vida, até hoje tenho sonhos constantes com o momento em que me vi na rua, sem ter ideia de como seria a minha vida dali para frente.”
Vanessa Pimentel, radiologista, 33 anos
“Disse que preferia me ver morta”
“Minha bisavó foi a primeira a se converter às Testemunhas de Jeová. Desde então, toda a minha família faz parte do grupo — e cresci com os costumes de lá. Na infância, não podia comemorar meus aniversários. Nunca ganhei um bolo ou presente de Natal e nem dancei uma quadrilha. Também não podia conviver com as outras crianças, somente as que eram da mesma religião. Dentro de casa, nunca recebi afeto, nem me senti realmente amada.
Na adolescência, comecei a pesquisar na internet sobre muitos assuntos e a questionar algumas das regras da religião. Tive uma colega que morreu porque foi proibida de receber transfusão sanguínea. Não achava isso correto. Minha família e eu nos mudamos para o Japão, mas continuamos frequentando reuniões da religião, organizadas por brasileiros que viviam no país.
Aos 18 anos, conheci um rapaz e pratiquei o pecado do sexo fora do casamento. O sentimento de culpa foi grande e acabei contando para minha mãe. Esperava acolhimento, mas só recebi exposição. Ela levou o caso para que fosse julgado pelos membros do grupo. Com isso, fui expulsa da organização.
Na cabeça da minha mãe, eu pediria perdão de joelhos e seria readmitida. Mas não foi isso que fiz. Então, ela, meu padrasto e minha irmã pararam de me dirigir a palavra. Em menos de uma semana, fizeram minhas malas. Minha mãe chegou a dizer que preferia que eu estivesse morta: na visão dela, somente assim poderia um dia ir para o paraíso. Como ainda estávamos no Japão, fui expulsa de casa em um país que não era o meu. Só morávamos lá há cinco meses, por isso eu mal sabia falar algumas palavras no idioma local.
Fui acolhida por uma colega da fábrica na qual trabalhava. Depois, eu e o rapaz que havia conhecido começamos a namorar e fui morar com ele. Acabamos nos casando no papel quando meu visto venceu. Mas nossa relação não durou. Juntei o máximo de dinheiro que pude e voltei para o Brasil sem uma rede de apoio e sem casa para morar. Passei por muita necessidade. Para ser sincera, não sei dizer como ainda estou viva.
Cheguei a tentar contato com a minha família quando voltei, mas desisti. A rejeição foi devastadora. Tive problemas psicológicos, depressão e ansiedade. Mas consegui um trabalho, fiz um curso na área de RH e hoje sou funcionária de uma boa empresa, vivo no meu próprio apartamento. Tive alguns relacionamentos, mas nunca tive filhos. Tenho medo de um dia cometer com uma criança os mesmos erros que cometeram comigo. Já senti tristeza, depois muita raiva, mas hoje penso na história toda como na de um filme de superação.”
Lilian Pessoa, recrutadora, 37 anos
Fonte: Universa
Créditos: Universa