Todos sabem da passagem bíblica em que uma mulher adúltera é levada pelos escribas e fariseus ao Mestre para que ele a julgue e a condene. Na época, mulheres condenadas pelo adultério pagavam com a vida num apedrejamento público para salvar a honra do marido. O evangelho diz que Jesus propôs um desafio: “Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”. E ninguém ousou prosseguir a sessão de condenação.
Mas, moralmente, aquela mulher foi apedrejada e aniquilada pelo machismo, sexismo e hipocrisia do mundo masculino que vigorava, vigiava, fazia leis e punia quem transgredisse. “A mão que afaga, é a mesma que apedreja”, verso do nosso Augusto dos Anjos, serve direitinho para os machos que levaram a mulher ao Mestre.
Provavelmente muitos deles já tinham se deitado com ela e lhe tirado do corpo o prazer que não tinham em casa com suas esposas. Muitos deles a desejavam e, na impossibilidade de satisfazerem os desejos da “carne”, decidiram culpá-la por excitá-los.
Vocês sabem qual era a função de um escriba naquele tempo? Pois ele tinha o importante papel de ler e interpretar as leis. E sabem qual o papel de um fariseu? Viver de acordo com os princípios da religião. Ou seja, os dois grupos que levaram a mulher para o julgamento eram legalistas e moralistas, representavam os dois poderes: a religião e o Estado, numa simplória analogia com nossos tempos.
E se algum dos evangelhos narrasse uma passagem em que fariseus e escribas tentassem persuadir Jesus a condenar um gay, uma lésbica, uma travesti, uma pessoa trans? E se a cena que é narrada pelo apóstolo João tivesse como personagens pessoas de orientação sexual desviante? Como seria?
Se de repente trouxessem até Jesus um rapaz que fora flagrado na cama com um homem casado e pai? Quem seria apedrejado? E se uma travesti fosse alvo de julgamento pelos Fariseus por ser flagrada nas noites da Palestina vendendo prazeres a homens “héteros”?
Se o Velho Testamento apresenta leis de reprovação da homossexualidade, como a passagem do Levítico sempre citada pelos moralistas de ontem e de hoje, ou a tragédia que se abateu sobre os habitantes de Sodoma e Gomorra, o Novo Testamento parece que deve ser compreendido como um tempo novo de novas leis e de abertura de consciência, representados na figura do Cristo.
Não sabemos muito sobre o Jesus histórico, mas o Jesus bíblico – aquele que é narrado nos quatro evangelhos – escolheu viver ao lado de gente que não tinha prestígio algum, nem social nem moral. Daí que o rodeavam pobres, pescadores, mendigos, leprosos, mulheres. Provavelmente compunham essa turba de sujeitos marginais os gays.
Saltando dois mil anos, o episódio de Natal do Porta dos Fundos – A primeira tentação de Cristo (2019) – motivo de censura por grupos religiosos, políticos fundamentalistas e juízes conservadores – é uma afronta simplesmente por trazer como elemento de desconstrução do sagrado uma orientação sexual desviante, não hegemônica, ou seja, que debocha de uma tradição heteronormativa e hierarquizante na qual estão centrados os três troncos monoteístas: judaísmo, islamismo e cristianismo.
Qual o lugar das mulheres na construção dessas religiões? Busquem aí a presença delas nas narrativas ditas sagradas. Quase sempre elas estão ali para servir silenciosamente os homens. “Eis aqui a serva do senhor, faça-se em mim segundo o que Ele disse”. Tudo bem, é uma aceitação. Mas certamente quem escreveu a narrativa provavelmente não queria confusão com aqueles que regem as leis, sejam políticas ou religiosas.
Coloca aí que a mulher aceitou de bom grado carregar uma cruz sem reclamar e sem pensar nas consequências de sua decisão. Há muitas mulheres fortes nos textos sagrados. Mas suas histórias foram escritas por mulheres? Do mesmo modo, como a relação de amor entre homens é quase sempre apresentada por alusão, os textos sagrados também apresentam narrativas de amor entre iguais suavizadas ora pelas traduções, ora pelo escritor sagrado.
Imagina narrar de forma tórrida o amor que Davi tinha por Jonathas! A palestina vivia sob domínio dos romanos, cuja literatura dá conta dos amores entre iguais (vejam o Satiricon de Petrônio, por exemplo). A Grécia permitia o jogo homoafetivo entre um homem e um adolescente como forma de orientação pedagógica e inserção dos meninos na juventude.
E havia nos rituais greco-latinos a presença da prostituição de mulheres e rapazes em honra aos deuses. Provavelmente, quando os textos que aludem à que seria homossexualidade se referem a condenação desses rituais pelos escritores judeus.
Mas a homossexualidade é uma espécie de monstro a perturbar e assombrar homens e mulheres de bem. Ela foi vista ora como doença, ora como comportamento imoral, ora como ofensa às leis sagradas. Quem pode dizer qual a orientação sexual de Jesus? Essa é a pergunta necessária, mas irrespondível.
Alguém já ousou perguntar nas catequeses e encontros dominicais se Jesus teve relação sexual com mulheres? Se teve filhos? Alguém ousou questionar os mestres religiosos sobre a vida íntima dos apóstolos? Pedro, que era casado, e é considerado o primeiro Papa, largou a mulher e os filhos para seguir Jesus? As esposas e os filhos dos discípulos não os acompanhavam nas peregrinações como uma grande família?
Há uma tradição popular que coloca Maria Madalena como trabalhadora sexual que decide seguir Jesus e se torna companheira dele. Como seria interessante saber que o Cristo divino viveu toda a experiência do humano, inclusive a sexual. Mas se um Jesus casado e heterossexual é rechaçado pela história da igreja, um Jesus gay só pode mesmo representar uma afronta.
O Jesus que os cristãos adoram não pode ter sexo, nem desejo, nem libido, nem pulsão. É um Jesus sem Eros no corpo e na alma. Um Jesus cujas palavras não ganham corpo. O Jesus que os cristãos amam amar.
Estranhamente, prostitutas e homossexuais sempre foram objetos de repulsa e desejo, reprovados publicamente enquanto eram amados intimamente. Eis o paradoxo. Que aconteceria se o Jesus, retratado pelo Porta dos Fundos, fosse um marido cachaceiro, mulherengo e espancador de mulheres? Talvez não haveria tanto alvoroço como o Jesus gay ativo que é tentado eroticamente por um Diabo passivo no deserto.
Aliás, o especial de Natal do Porta dos Fundos – Se beber, não ceie (2018), satirizava a última ceia, quando os discípulos passam do ponto na bebida e acordam de ressaca procurando Jesus.
Além disso, mulheres invadem a ceia para festejar a despedida de Jesus (heterossexual não celibatário, tá?!), com direito a cocaína trazida por Tomé e um Jesus que briga por conta da bebida, que faz brincadeirinha homofóbica com os companheiros. Mas não houve essa comoção pública de reprovação, porque, afinal, um Jesus hétero de ressaca pode, mas gay é coisa dos infernos.
Porque o que está em jogo na reprovação dessa representação é que a homossexualidade continua sendo uma afronta à moral de uma sociedade cujas leis foram elaboradas para reforçar o predomínio do masculino sobre o feminino. A régua da moralidade é masculina, e heterossexual. Todos os que se desviam desse contrato hétero serão punidos, “assim na terra como no céu” dos moralistas-machos de plantão.
Numa sociedade fundamentada na dominação masculina, tanto simbólica quanto concreta, ser gay, lésbica, travesti e transsexual é, no mínimo, uma perversão, palavra utilizada para definir quem não usa o sexo para fins de reprodução e, por isso mesmo, é considerado devasso.
A censura ao episódio do Porta dos Fundos ocorre menos pela transgressão própria da sátira, mas porque estamos vivendo um daqueles momentos em que é preciso renegociar os domínios da sexualidade, como afirma a pensadora lésbica Gayle Rubin, num texto da década de 1980 chamado “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade”.
Ela afirma que as formas da sexualidade “são permeadas por conflitos de interesse e manobras políticas, tanto deliberadas quanto incidentais”. Ou seja, a moralidade sempre dispôs de um aparato social, médico e legal para pautar os limites da sexualidade. Em determinadas épocas, a sociedade se vê rodeada de discursos moralistas que tentam incriminar comportamentos sexuais em nome da religião, do Estado, da justiça e da medicina.
Foucault chamou esse aparato de “dispositivo da sexualidade”, e Rubin enumera algumas dessas ações: “campanhas educacionais e políticas promovendo a castidade, combatendo a prostituição e desestimulando a masturbação, especialmente entre os jovens. Defensores da moral atacavam a literatura obscena, pinturas com nudez, salões de música, a prática do aborto, informações sobre controle de natalidade casas de dança”.
E se forjam os discursos do homossexual como um delinquente social que ameaça as crianças; e se incita a sociedade com campanha antigay a proteger as crianças das mãos dos homossexuais, e se ataca e se proíbe a educação sexual na escola, criando o discurso da pornografia infantil.
Tudo isso é Gayle Rubin falando há três décadas sobre as leis da época vitoriana (século XIX) e americanas no século XX. Mas parece que ela está se referindo ao Brasil do século XXI, especificamente na última década.
Buscar o apelo popular a partir de temas polêmicos sobre a sexualidade é uma estratégia de políticos de direita e fundamentalistas religiosos para excitar a população e impedi-la de participar de decisões importantes da vida social. São táticas políticas, sobretudo em regimes autoritários e governos antidemocráticos. Não preciso fazer uma lista de episódios, do impeachment da Dilma para cá, em que o tema da sexualidade incitou a opinião pública colocando os LGBTQ no centro da execração.
Da interdição da mostra queer no Rio Grande do Sul ao famoso (e invisível) kit gay e que ajudou a eleger Bolsonaro, passando pela mamadeira de piroca que fez com que os tios e as tias do whatsapp delirassem, só temos uma certeza: o brasileiro reza na cartilha da heteronormatividade compulsória, fruto de uma colonização patriarcal, machista e homofóbica. E cristã.
Mas é preciso alertar: somos um dos países em que mais se matam LGBT no mundo, e que viu o feminicídio aumentar consideravelmente nos últimos anos. Em nome da moral e dos bons costumes é permitido ao marido, ao namorado ou noivo matar sua companheira? Em nome da moral e dos bons costumes heterossexuais, é permitido matar gay, travesti e transexuais? Quer dizer que o mandamento “não matarás” não serve quando a vítima é mulher e LGBTQ? Em nome da moral dos cidadãos de bem é permitido censurar qualquer obra de arte ou produto cultural que faz uma sátira sobre o sagrado?
Uma sátira ou comédia como a do Porta dos Fundos, não está chamando a nossa atenção para o sagrado quando o carnavalizamos, mas para nós mesmos. Os deuses são feitos à nossa imagem e semelhança e não o contrário. Quando olhamos para a representação deles, somos nós que queremos ver. Daí que o Jesus do especial de Natal 2019 não serve como modelo de homem, porque nossa sociedade ainda não se libertou de uma visão normativa e binária do sexo/gênero.
De qualquer modo, alguma coisa está muito fora da ordem quando um estuprador diz que a vítima foi estuprada porque se vestiu inapropriadamente, ou quando, ao invés de se julgar a ação do grupo que ateou fogo na produtora de vídeo, se resolve impedir que o vídeo em questão continue a ser veiculado.
Antes de nos perguntarmos a quem interessa o problema da orientação sexual de Jesus, é melhor investigarmos a serviço de quem os escribas e os fariseus do nosso tempo estão vivendo sua crença e interpretando as leis.
Fonte: Carta Capital
Créditos: Cláudio Rodrigues