Desde que assumiu o ministério da Economia, Paulo Guedes faz críticas aos altos salários do funcionalismo público no Brasil e promete uma reforma administrativa profunda. Seu plano, no entanto, não deve sair do papel facilmente. Dona de forte lobby junto aos parlamentares, a elite do funcionalismo federal vem pressionando para que as mudanças nas carreiras não aconteçam. A pressão tem surtido efeito. Depois de adiar, em 2019, o envio do projeto que propõe alterações no RH da União, o presidente Jair Bolsonaro chegou a afirmar que a reforma proposta pelo Executivo ao Congresso será a “mais suave possível” e, ainda assim, não há um prazo para que a promessa saia do papel. Entre os pontos centrais, estão a extinção da estabilidade para novos servidores e as mudanças nas regras de progressões e reajustes.
Na avaliação do advogado Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV Direito São Paulo, a estabilidade dada aos servidores deve continuar, mas apenas mediante uma verdadeira avaliação de desempenho do funcionário, o que, segundo ele, não acontece no Brasil —embora isto esteja previsto na Constituição. Reportagem publicada na Folha de S.Paulo nesta quinta-feira, citando dados da Controladoria-Geral da União (CGU), mostra que nenhum dos mais de 7.700 servidores federais expulsos desde 2003 foi demitido por mau desempenho. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, Sundfeld também defende a unificação de algumas carreiras. O advogado chegou a ser consultado pela equipe econômica do Governo por ser um dos principais especialistas na área. Para ele, hoje o principal problema a ser enfrentado não é o fiscal, mas o da produtividade no setor público.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Pergunta. A folha de pagamento é hoje o segundo maior gasto obrigatório do Governo. Quais seriam os pontos fundamentais para uma reforma administrativa que alivie o descontrole das contas públicas?
Resposta. O maior problema do serviço público brasileiro nem é o fiscal, mas o fato de ele não funcionar bem. Temos que reconstruir as progressões nas carreiras e as remunerações de modo que eles tenham estímulos ao melhor desempenho. Precisamos também retribuir os que têm bom desempenho dando estabilidade ao fim do estágio probatório de três anos. E remunerando com bônus e promoções em função da eficiência. Eliminar aqueles que têm desempenho sempre insuficiente. Para isso, precisamos de uma verdadeira avaliação do desempenho. Essa é a grande reforma que vai revolucionar o serviço público brasileiro e irá, inclusive, gerar economia de recursos. Nós, provavelmente, temos gente demais para fazer coisas que algumas pessoas melhor remuneradas podem fazer com mais eficiência. Esses são os nosso problemas e essas reformas podem ser feitas por lei, não precisa de Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
P. Mas já não existe um sistema de avaliação dos servidores públicos?
R. De fato, a Constituição manda que se faça uma avaliação de desempenho e o que acontece hoje é que se está descumprindo essa regra. É preciso fazer uma avaliação adequada e não essas que existem por aí, que são uma fantasia. Tem que haver um planejamento geral de cada órgão e metas objetivas para que cada servidor possa perseguir. Além disso, é preciso que a avaliação do comportamento subjetivo individual seja feito por um coletivo ou colegiado. Critérios de julgamento não podem ser opinião de chefe ou não iremos obter uma avaliação adequada. Outra questão é que não se pode permitir que o chefe dê notas altas para todo mundo, porque essa é a tendência natural dos chefes para evitar problemas para ele e para a equipe. A avaliação precisa distinguir o desempenho.
“Sistemas de estabilidade têm em todo mundo, no Brasil continuará fazendo sentindo”
P. Estudo do Banco Mundial mostrou que um funcionário público no Brasil custa o dobro do seu par na iniciativa privada. Como chegamos a tamanha discrepância?
R. Chegamos a essa discrepância porque o Estado começou como o grande provedor de empregos. E foi criada uma poderosa categoria de servidores públicos que pressionaram os poderes políticos a cada vez mais aumentar a sua vantagem. Claro que essa regra não é para todos os servidores. Há categorias com salário inicial e final muito baixos. Há uma desigualdade e uma injustiça enorme dentro do serviço público. Enquanto algumas carreiras ganham muito além da iniciativa privada, outros ganham muito pouco. São verdadeiros párias do serviço público, precisamos corrigir isso.
P. Os salários tão altos e essa desigualdade também são identificadas em outros países?
R. Os países que possuem os quadros de funcionários bem organizados procuram pagar níveis adequados para o serviço público concorrer com o privado. É muito ruim que todos os agentes públicos sejam párias do trabalho, que ganhem menos que a iniciativa privada e que concentrem as pessoas menos qualificadas. Procura-se pagar salários que sejam atrativos, tanto que o salário também vem acompanhado de outros benefícios, como ambiente de trabalho bom, tipo de propósito que está envolvido no serviço público. São atrativos que contam. É possível que algumas categorias ganhem mais que a iniciativa privada, mas pagar extraordinariamente mais que a iniciativa privada não faz sentido. Não é preciso pagar a um membro do Ministério Público duas vezes o que ganha um advogado do nível dele na iniciativa privada.
P. A estabilidade dada aos servidores também é comum em outros países?
R. Sim, ela é comum, mas alguns possuem restrições. A estabilidade é importante, já que a máquina pública é enorme e a impessoalidade é um valor importante para a administração. É preciso que haja algum tipo de sistema para que não seja permitida manipulação após eleições e a chegada de um novo Governo. Isso é muito nocivo. Sistemas de estabilidade têm em todo mundo, no Brasil continuará fazendo sentindo. O que não faz sentido é que a estabilidade seja a impossibilidade de mexer com a pessoa, nem a Constituição brasileira admite isso. O que acontece é que o poder público não quer fazer. Não faz avaliação, não dispensa por avaliação insuficiente. Quando há a crise fiscal, ele não usa o mecanismo que está na Constituição que permite a dispensa de servidores do Estado mediante o pagamento de indenização de um salário. Eles não fazem nada disso. Ficam parados tentando renegociar a dívida, que é uma maneira de não enfrentar o ônus político. Pode-se alterar a Constituição, mas não existe nenhum sistema político que fará que o servidor seja ejetado do cargo público. Sempre será preciso a decisão da autoridade que comanda a administração. Mesmo na PEC emergencial, que prevê redução de 25% no salário e na jornada de servidores, quem vai entrar no corte? Todo mundo? Certamente também terá que haver escolhas, ver o tamanho do buraco, porque não faz sentido você tirar 25% de todo mundo.
P. O ministro da economia Paulo Guedes afirmou que os servidores são temidos e detestados pela opinião pública. E que eles precisam mudar de atitude para serem valorizados. O senhor concorda?
“Atribuir a cada servidor o mau desempenho do serviço público é um equívoco. Grande parte dos problemas é da administração”
R. Atribuir a cada servidor público o mau desempenho do serviço público é um equívoco. A população talvez fique irritada com o servidor público na ponta. Por exemplo, um pai com o professor do filho dele. Mas, grande parte dos problemas é da administração, não tem a ver com os servidores individualmente. Muitas vezes, falta investimento em gestão pública. No caso da educação, não se fazem reformas de gestão para melhorar sistemas organizacionais, melhorar o fluxo de informação, a estrutura de estabelecimento. O professor na ponta não é quem pode resolver, ficar culpando o servidor lá na ponta não funciona.
P. As medidas das três PECs (Pacto federativo, Emergencial e dos Fundos) apresentadas pelo Governo vão na direção correta?
R. A reforma dos recursos humanos virá ainda em outra PEC. Já foram apresentadas 3 PECs com uma infinidade de medidas. Tem algumas coisas sobre os recursos humanos na PEC emergencial para segurar o aumento das despesas em situação de crise fiscal. É um tema de tentar lidar com a explosão na área de gastos com o pessoal e o crescimento explosivo. Uma delas é a diminuição da jornada do servidor com consequente redução de remuneração. É uma medida possível que já estava na lei de responsabilidade fiscal e o Supremo considerou inconstitucional. Agora, eles querem colocar na Constituição. Já manter categorias privilegiadas fora de algumas dessas regras de emergência não faz sentido. Se há um problema de emergência fiscal, e a emergência faz com que a despesa de todos os poderes, de todos os órgãos fiquem comprometidos, então precisa atingir todas as carreiras. Um dos problemas graves da organização dos recursos humanos no Estado é que tem carreiras abandonadas e outras que são tratadas com vantagens impressionantes. E são essas que estão relacionadas aí, policiais, membros da Justiça, Ministério Público e diplomatas.
Fonte: EL País
Créditos: EL País