Mais de três anos após escrever um artigo intitulado “Somos todos Sergio Moro”, publicado na Folha em 2016, o juiz Nino Oliveira Toldo, 55, se diz frustrado após episódios que levaram a Lava Jato a ser questionada.
O magistrado, que presidiu a Ajufe (Associação de Juízes Federais do Brasil) entre 2012 e 2014, defendia no artigo o apoio de manifestantes a Moro, que sofria críticas em meio ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Toldo dizia que a Justiça Federal era reconhecida simbolicamente por meio de Moro e que “não tem partido, credo ou ideologia política”.
Atualmente integrante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Toldo não se arrepende do que escreveu, mas vê como passíveis de críticas a ida de Sergio Moro para o governo Bolsonaro e também as mensagens trocadas por ele com procuradores da Lava Jato, obtidas pelo site The Intercept BR.
Ele teme que o desgaste causado na Lava Jato com essas atitudes provoquem retrocessos no combate à corrupção e à “criminalidade do tipo mafioso” no país. “O juiz Sergio Moro deixou a magistratura para fazer parte do governo Bolsonaro, que foi de certa forma beneficiado, não pela Lava Jato em si, mas por tudo o que acontecia naquela situação”, disse, em entrevista à Folha.
Em novembro, ele havia externado suas reclamações no evento Impactos Jurídicos da Operação da Lava Jato, quando também defendeu que haja separação entre o juiz que decide sobre medidas da investigação e o que julga o processo.
A medida que depois foi aprovada no Congresso e sancionada por Bolsonaro —mas é criticada por Moro. Após a sanção, Nino disse à reportagem que discorda de dois pontos do texto sancionado: o prazo curto para adaptação do Judiciário e atribuição de competência ao juiz das garantias para receber a denúncia.
O sr. disse: ‘Em 28 anos de magistratura nunca tive uma conversa com o Ministério Público daquele jeito’. O que é aquele jeito? É de conversar e indicar alguém [como testemunha]. De ter uma conversa com o Ministério Público que pudesse me aproximar do órgão de acusação como acusador. Daquele jeito que foi divulgado pelo The Intercept. Mas conversar com o Ministério Público e advogado sempre conversei.
O problema para o sr. é que aparenta que houve envolvimento do juiz com a investigação? É o que foi insinuado a partir daquilo que foi divulgado, sempre partindo do pressuposto que aquilo [as mensagens] seja verdade —porque há o questionamento. São diálogos que não deviam ter ocorrido, a meu ver.
Mas daí a tratar isso como imparcialidade vai uma distância larga. Porque a imparcialidade do juiz está relacionado ao seu estado de ânimo em relação à pessoa que ele julga. Uma vez que houve a decisão do juiz e ela foi revista por um tribunal e um tribunal superior, até que ponto aquilo pode gerar nulidade?
Apesar de uma determinada conduta em um determinado ponto do processo, pode não haver nulidade do processo. É lógico que a defesa pretende considerar esse ponto nulo, mas não necessariamente.
Então, não é o caso de o Supremo anular os processos da Lava Jato por conta disso? Eu não vou falar do caso específico, mas uma situação como essa não necessariamente geraria uma nulidade. A suspeição está ligada ao estado de ânimo. O juiz, apesar de ter um estado de ânimo num sentido, conduz o processo corretamente. Permite a produção das provas corretamente pela defesa e pela acusação e julga.
[Se] houve recurso dentro do devido processo legal, o tribunal decide e posteriormente se descobre que o estado de ânimo do juiz era um, isso gera nulidade do processo? A meu ver, não. Senão você teria que ter uma cadeia de suspeições, que passaria para os tribunais, e isso não faz sentido.
É compreensível o ânimo da defesa de querer derrubar tudo o que foi feito, mas não necessariamente isso gera nulidade. São aspectos diferentes. Um juiz deveria ter uma conversa daquela natureza? Não. Isso influenciou efetivamente no processo? Não sei. Isso gera a nulidade do processo como um todo? Não necessariamente.
O sr. disse que se sente frustrado que a Lava Jato tenha a lisura questionada. Por quê? É fundamental, para que o sistema de Justiça funcione bem, que não exista nenhum questionamento quanto à imparcialidade do juiz. O juiz não deve dar motivo para que a sua imparcialidade seja questionada. Uma certa frustração que gera é que isso possa estar sendo questionado agora.
Por exemplo, o juiz Sergio Moro deixou a magistratura para fazer parte do governo Bolsonaro, que foi de certa forma beneficiado, não pela Lava Jato em si, mas por tudo o que acontecia naquela situação. A meu ver é muito ruim esse questionamento.
Não critico o Sergio Moro pela decisão que ele tomou de sair da magistratura. Hoje, passados mais de um ano, fica até fácil dizer “ele agiu certo, agiu errado”. Não quero ser engenheiro de obra pronta. Mas qualquer medida que um juiz tome que possa pôr em dúvida a sua imparcialidade é criticável.
Eu sou um crítico dos juízes que expõem demais na mídia, que se deixam expor, que se levam, sei lá por qual motivo, se por vaidade ou não…
O sr. tem criticado a figura do ‘juiz herói’. Muitos juízes trabalham discretamente. Lógico, se tem uma questão que envolve políticos de alto relevo, ex-presidentes da República e a própria presidente da República na época, os juízes vão aparecendo e existe no senso comum essa ideia de que alguém vai vir e pôr as coisas no lugar, um salvador da pátria.
Não existe salvador da pátria. O juiz é um ser humano, ele acerta, ele erra. O que o juiz precisa sempre levar em consideração é que ele tem suas próprias limitações, tem que buscar agir de forma extremamente correta nos casos que tem que julgar sem se deixar levar por essa aclamação popular que ele possa ter em função daquilo que ele está julgando.
O próprio artigo com o título ‘Somos todos Sergio Moro’ não ajuda a incensar essa figura do juiz como uma pessoa infalível? Pode ser que isso tenha de alguma forma contribuído, mas a gente não tem uma forma absoluta de escrever que seja imune a qualquer tipo de crítica. A ideia era, num momento em que um juiz vinha sofrendo ataques, ter o apoio de um colega seu e de um ex-presidente da associação, que naquele momento podia ter esse pensamento.
Eu não me arrependo de ter escrito o artigo, acho que estava contextualizado, e o Sergio Moro é uma pessoa séria, conheço ele, e não é imune a críticas.
A saída dele da magistratura e o ingresso na política, ainda que ele diga que o cargo não é político, isso gera, como gerou, em muitas pessoas, o pensamento de que ele tivesse agido politicamente. Eu não acredito que o Sergio Moro tenha agido politicamente. Mas muitas pessoas pensam, e você vai dizer que não? Que as pessoas não podem pensar assim? Podem.
O juiz tem que tomar cuidado com isso. Foi uma decisão de vida dele, porque deixar a carreira da magistratura para ingressar numa coisa incerta que é a política é um risco grande, certamente ele calculou tudo isso.
Decisões como essa acabam afetando toda a magistratura, na visão do senhor? Afetam, mas como vivemos num período de polarização, quem é pró-Bolsonaro apoia ainda mais a decisão, quem é contrário e a favor de Lula abomina a decisão que ele tomou e leva a esse questionamento da imparcialidade.
O ideal a meu ver é que nada disso tivesse acontecido, mas aconteceu. Precisamos ver dentro da normalidade e da segurança jurídica, que é o que importa para o país. O país vive um período de insegurança jurídica, e isso é muito ruim. Mas não só por causa dele.
Qual o momento de insegurança jurídica? A própria discussão sobre a prisão após a decisão de segundo grau. Essa ida e vinda do Supremo Tribunal Federal gera muita insegurança e passa a ideia para a sociedade de fragilidade do próprio Poder Judiciário.
E o próprio Poder Judiciário precisa também de decisões seguras. Eu atuo também num tribunal e nós aplicamos o direito. Os tribunais superiores têm um papel de uniformização. Quando o tribunal titubeia, todo o sistema sofre.
O senhor também questiona o excesso, segundo seu entendimento, de conduções coercitivas. Sempre vi a condução coercitiva com muita restrição. Para mim nunca fez sentido conduzir coercitivamente um investigado que, chegando na polícia, tinha o direito de ficar em silêncio e não produzir prova contra si mesmo. Isso o Supremo Tribunal Federal findou com uma ação da Ordem dos Advogados.
E qual seria o objetivo de todas essas conduções? Talvez o de pressionar a pessoa. Se a Polícia Federal chega na porta da sua casa e fala “o senhor vem comigo”, a pessoa vai se sentir intimidada e vai acompanhar. Mas isso foi feito dezenas de vezes e não foi questionado, o que não torna certo. A repetição de um erro não torna o erro certo.
Como o senhor vê o impacto de tudo o que aconteceu esse ano para o combate à corrupção no país? O combate à corrupção como política pública não se faz apenas pela repressão. A repressão é fundamental, mas precisa ser feito todo um trabalho de mudança de cultura na sociedade.
Na Lava Jato, muitas prisões foram fundamentais e fundamentadas para que houvesse essa mudança de entendimento das pessoas. Até então, qual era o problema? Quando a corrupção estava limitada ao guarda da esquina, ao fiscal da obra, ao policial rodoviário, ou às vezes a um membro do Ministério Público ou do Judiciário ou ao prefeito, aquilo era tolerado. No momento em que a investigação começou a atingir aquilo que chamam de corrupção generalizada, a cúpula, incomodou bastante
Num primeiro momento há aquele baque, mas depois o sistema institucionalizado de corrupção começa a se recompor. De certa forma era previsível, mas era temido. Eu temia que viesse esse tipo de refluxo. Chamava atenção, porque era o que aconteceu na Itália, com a Mãos Limpas.
O meu receio como juiz e como cidadão brasileiro é que leis sejam modificadas para retirar meios de obtenção de provas, mecanismos de atuação dentro de investigação de processos, que dificultem apurar e processar casos de corrupção grave e institucionalizada, como esse que foi visto na Petrobras.
Mas isso tem acontecido? A lei de abuso de autoridade foi uma lei reativa que é uma sinalização para a magistratura, também para o Ministério Público e também para a polícia. O que permitiu a Lava Jato foram medidas legislativas aprovadas e que são necessárias para o combate a uma criminalidade extremamente deletéria e violenta para a sociedade, que é a criminalidade do tipo mafioso, no âmbito de um sistema internacional.
Recuar disso é um atraso, por isso que eu vejo de uma forma um tanto crítica o excesso de exposição em decorrência de uma operação, e receio que esse excesso possa trazer um retrocesso nesse sistema de investigação.
Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Folha de São Paulo