Em alguns aspectos, existe um grau de imitação nesses protestos, acelerada pela disseminação instantânea proporcionada pelos smartphones dos manifestantes e pelas redes sociais que eles consomem. Mas o descontentamento é particularmente intenso na América Latina. Protestos populares como esses não são novidade. No começo dos anos 2000, demonstrações de rua derrubaram presidentes eleitos na Argentina, no Equador e na Bolívia — duas vezes em manifestações lideradas por Evo Morales. O que há de novo — e alarmante — é a intensidade dos incêndios criminosos de prédios e transportes públicos e a escalada de saques a supermercados e lojas.
Esses protestos não são apenas a manifestação de descontentamento com o statu quo . Mostraram-se no ano passado, na eleição de Jair Bolsonaro no Brasil e na de Andrés Manuel López Obrador no México. Esses dois populistas de ideologias políticas contrárias têm, em comum, um desprezo pelo establishment político e se apresentaram como os futuros salvadores de seu país. Sua vitória foi a mais extrema demonstração de um poderoso sentimento das ruas contra quem está no poder. Nessa mesma linha, Mauricio Macri foi derrotado e viram-se o retorno dos peronistas ao poder em outubro, na Argentina, e a recente vitória apertada da centro-direita no Uruguai, colocando fim a 15 anos de governo da Frente Ampla, de centro-esquerda.
As causas desse profundo descontentamento não são difíceis de encontrar. Ele começa com a estagnação ou a redução do crescimento econômico desde o fim do boom das commodities. Entre 2003 e 2012, as economias da América Latina, como um todo, se expandiram e alcançaram uma taxa média anual de 4,1%. Desde 2013, essa taxa é de 0,8%. É menor do que o índice de crescimento da população, então a renda média per capita diminuiu. A grande queda de pobreza da primeira década do século XXI parou. De fato, a pobreza alcança cerca de 30% da população. Índices que tomam a região como um todo têm o problema de unir num mesmo grupo países com realidades diferentes, da Venezuela ao Brasil. Mas até no Chile o crescimento não é tão alto quanto foi. Outro ponto importante é que a desigualdade na América Latina continua muito alta, embora tenha declinado nos primeiros 12 anos deste século. A média geral do Coeficiente de Gini — segundo o qual 1 indica total desigualdade e zero totalmente igualdade — caiu de 0,54 em 2002 para 0,47 em 2017. Mas esse progresso está mais lento. Desigualdades que eram toleradas quando havia uma sensação de oportunidade tornaram-se intoleráveis.
Essa estagnação levou a um sentimento de frustração nas expandidas “classes médias” da região. Muito daquilo que chamamos de classe média é, na verdade, a classe baixa ou classe trabalhadora, porém menos pobre do que antes. O maior segmento da população da América Latina (cerca de 40%) é o que o Banco Mundial chama de “vulnerável” — com um rendimento, por pessoa, de US$ 120 a US$ 300 por mês. Em 2018, mais da metade dos chilenos com um emprego tinha um salário de menos de 400 mil pesos por mês — US$ 500, no câmbio de hoje; US$ 609, um ano atrás. Eles têm renda disponível, mas muitos se endividaram (a taxa de juros anual de crédito ao consumo é de 20% a 30%). Essas pessoas olham para a frente e temem aposentadorias pequenas, planos de saúde caros e o risco de voltar à pobreza caso fiquem extremamente doentes.
Entre as causas da insatisfação popular na América Latina está o fato de que a população da região cansou de ter serviços públicos ruins. Pesquisas mostram mais descontentamento com a saúde na América Latina do que em qualquer outra região do mundo. Manifestantes em Santiago e Bogotá focaram no transporte público por causa da superlotação. Uma polícia fraca significa que muitos não se sentem seguros. A região contém 8% da população mundial, mas é onde ocorrem 33% dos assassinatos. Isso não quer dizer que não houve grandes avanços na América Latina nos últimos 40 anos. A educação foi enormemente expandida e a batalha continua para melhorar sua qualidade. Alguns países, incluindo Brasil, Colômbia e Peru, almejam a saúde pública universal. Houve alguns sucessos em polícia comunitária, mas isso requer vigilância constante. Os carabineros, a polícia do Chile, já foram admirados. Agora, sua brutalidade e incompetência foram expostas.
Por último, está talvez o mais importante fator por trás do descontentamento: a má reputação da classe política e dos partidos políticos. Na pesquisa da ONG chilena Latinobarómetro, feita em 18 países da região, em julho e agosto do ano passado, 71% dos entrevistados expressaram descontentamento com sua democracia; 79% (e 90% no Brasil) concordaram que o país era governado por “poucos grupos poderosos, em benefício próprio”, em vez de almejarem o bem comum. Apenas 13% tinham qualquer confiança em partidos políticos.
Existe um lado bom: a corrupção está mais visível, em parte, porque está sendo mais combatida, especialmente em países como Brasil e Peru. Mas ainda há muito a ser feito. O Judiciário precisa ser fortalecido, e as regras para financiamento de campanhas precisam ser reformadas, para cortar os custos da política e acabar com o ciclo corrupto de empresas, contratos públicos e políticos. O enfraquecimento de partidos políticos é uma tendência global, mas está ainda mais aguçado na América Latina. A fragmentação política está se tornando extrema. Os políticos deixaram de inspirar idealismo. Como essa profissão é considerada corrupta, muitos jovens brilhantes preferem outras. O resultado é que os partidos já não estão fazendo o básico, que é agregar e canalizar os interesses. Em vários países, eles foram colocados de lado pela política de rua.
Será o Brasil o próximo a ver os protestos? É possível, já que o PT está com sede de vingança por causa da prisão de Lula. Mas é pouco provável. O Brasil já viu isso antes. Os protestos chilenos são muito parecidos com aqueles do Brasil de 2013, que eclodiram do nada, tendo como pano de fundo crescimento econômico e progresso social.
O que quer que aconteça, governar na América Latina ficou mais difícil. Líderes políticos provavelmente passarão a temer tomar decisões economicamente racionais, tais como remoção de subsídios de combustível e reformas do mercado de trabalho. Espera-se que os protestos levem a sociedades menos desiguais, com sistemas de juros mais justos e Estados mais redistributivos. O risco é que o descontentamento desencadeie um círculo vicioso de medo e estagnação econômica contínua. Não há muito amor de sobra em tempos de cólera.