Os espaços são separados. A casa grande é a casa dos brancos. O rancho, a casa dos negros. Não há margem para dúvidas.”
O relato acima pertence a Zélia Amador de Deus, uma militante histórica do movimento negro brasileiro, e está descrito precisamente na obra “Ananse Tecendo Teias na Diáspora: Uma Narrativa de Resistência e Luta das Herdeiras e dos Herdeiros de Ananse”, publicado pela Secretaria de Cultura do Pará.
Tive a honra de encontrá-la nessa feira —um dia que guardarei para sempre em meu coração. Ela me disse que a geração dela lutou muito para que a minha pudesse estar na universidade e que ficava feliz em ver a gente incomodando.
Em dado momento, Zélia lembrou Exu: “Djamila, não se esqueça que Exu é o senhor dos caminhos. Com sua agressividade abriu trilhas pela diáspora. Precisamos seguir sendo corpos insurgentes, que incomodam, abrindo espaços, a gente não pode abaixar a cabeça. Sejamos como Exu”.
A cosmovisão de matriz africana está enraizada em sua obra, em que o mito africano de Ananse é muito forte. Considerado um mito fundante do povo ashanti, remonta ao começo dos tempos, quando não havia histórias para se contar, pois todas pertenciam a Nyame, o Deus do Céu. Kwaku Ananse, o Homem-Aranha, teceu uma teia de prata do chão ao céu, subiu à morada celestial e perguntou qual era o preço das
histórias. Deus disse então que Ananse deveria lhe trazer Osebo, o leopardo de dentes terríveis; Mmboro, os marimbondos que picam como fogo; e Moatia, a fada que nenhum homem viu.
Contrariando as expectativas diante de tão difícil pedido, o pequeno Ananse prontamente partiu e com criatividade cumpriu a missão. Trata-se de uma deliciosa e profunda história contada em detalhes em sua obra. Nyame, ao ver os três pedidos na teia, ficou maravilhado e chamou toda a corte para celebrar em nome de Ananse.
“De hoje em diante, e para sempre, as histórias pertencem a Ananse e serão chamadas de histórias do Homem-Aranha!”, anunciou. O herói desceu ao chão por sua teia de prata, “levando consigo o baú das histórias até o povo de sua aldeia. Quando ele abriu o baú, as histórias se espalharam pelos quatro cantos do mundo, vindo a chegar aqui”, conta Zélia.
As histórias atravessaram povos, os mares, os sequestros transatlânticos de um povo em diáspora e seguem como metáfora para pensar a teia do povo afrodiaspórico com sua ancestralidade, a luta pela sobrevivência, bem como pela construção de novas histórias. “Ananse, mais que uma divindade, simboliza a possibilidade de vencer aquele que guarda todo o tesouro das histórias e de transformar as herdeiras e os herdeiros de Ananse em autores de sua própria história”, afirma a pensadora.
Zélia Amador de Deus é uma grande herdeira de Ananse, uma Mulher-Aranha. Teceu em trabalho diário a construção de uma rede de apoio a pessoas negras no norte do país, distribuindo ao povo a oportunidade de contar suas próprias histórias. Honra a herança da criação, do trabalho e da generosidade. Sua participação fundamental na luta pelas cotas raciais em universidades, campo de seu doutorado pela Universidade Federal do Pará em 2008, resultou em obra referência no tema.
Na UFPA, onde é professora no Departamento de Artes desde 1978, desenvolveu diversas teias para outras herdeiras e herdeiros de Ananse — por exemplo, ao cofundar o Grupo de Estudos Afro-Amazônico da universidade. Atuou como diretora do Centro de Letras e Artes no período de 1989 a 1993 e foi vice-reitora entre 1993 e 1997.
Neste mês, Zélia foi laureada com o título de professora emérita da universidade, em honra a todo o seu legado. É uma justa homenagem a quem constrói, inspira e possibilita tantas histórias. Viva Zélia, herdeira de Ananse!
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Djamila Ribeiro