Dignidade é tudo

Rubens Nóbrega

É quase um consenso a idéia de que o poder transforma as pessoas ou revelam aquilo que elas são de verdade. Acredito, contudo, que uns poucos preservam o caráter e as qualidades de sempre quando assumem algum posto a partir do qual se tornam capazes de fazer o bem ou o mal a muitos de seus concidadãos.

Mas tem uma categoria especial de seres humanos para as quais não há jeito nem salvação. São os bajuladores e espertos profissionais, aqueles que vivem à sombra ou dos restos dos poderosos, fiéis até quase o final dos mandatos ou primeiros sinais de naufrágio do poderio do manda-chuva da vez. Pense uma raça!

Venho armazenando relatos de feitos desse tipo de gente. Vou reuni-los em livro, se der tempo, mas terei o cuidado da tiragem pouca.

O encalhe vai ser grande. Adulados e aduladores em geral odeiam quando lhes tiram publicamente o véu ou a máscara. Mesmo não mencionados explicitamente. Terei a precaução de expor tais figuras apenas como personagens de histórias baseadas em fatos reais.

Um desses fatos, emblemáticos na minha avaliação, veio à lembrança recentemente, quando um servidor do Judiciário paraibano revelou que no nosso Tribunal de Justiça, por exemplo, faltando seis meses para o fim da gestão da hora, muitas das atenções, reverências e mesuras subalternas começam a mudar de gabinete. Migram para o próximo a ocupar a cabeceira da mesa principal na ‘Casa Grande’.

Quando ouvi tal referência, entendi com mais clareza o tratamento dispensado a um desembargador imediatamente após ele encerrar sua magistratura pela compulsória. Detalhe fundamental: o homem se encontrava na presidência do TJ quando chegou à idade limite para aposentadoria. Pior: o ‘prazo fatal’ expirou numa sexta-feira; na segunda seguinte, passaria o cargo ao sucessor já escolhido por seus pares.

Pois bem, reza a lenda que quando a segunda-feira chegou, o já aposentado desembargador preparou-se no capricho, juntamente com a sua senhora, para a última solenidade em que, pensava, dividiria a cena principal com o novo presidente. No íntimo, talvez apostasse que a ele estariam reservadas homenagens-surpresas, dessas que aumentam ainda mais a carga emocional das grandes despedidas.

Em casa, prontinho da silva, o casal esperou, esperou, esperou… E nada de aparecer o motorista do Tribunal! O mesmo que nos últimos dois anos atendera com pontualidade britânica o presidente. Assim, preocupado com o atraso, imaginando a possibilidade de ter acontecido algo grave (considerando que o trânsito na cidade está mesmo um horror), o desembargador ligou repetidas vezes, sem sucesso, para o celular do funcionário.

Na enésima tentativa, o motorista finalmente atendeu e cuidou logo de explicar ao ex-presidente, sem conseguir disfarçar na voz um enorme constrangimento: “Desculpe, Desembargador, mas me escalaram hoje para pegar o Doutor… Se o senhor quiser, chamo um amigo meu que trabalha num táxi num ponto aí perto de sua casa. Ele chega rapidinho”.

Foi aí que a ficha caiu. Mas não pensem que o nosso solenemente desprezado herói chocou-se com o ocorrido ou a ele deu importância acima do merecido. Vivido e calejado, tinha lastro de existência suficiente para observar, conhecer bem e compreender a natureza humana. Àquela altura, muita pouca coisa o surpreenderia.

Tanto que agradeceu ao motorista, autorizando-o a chamar o taxista que levaria o casal à posse do novo chefe do Poder Judiciário da Paraíba. Que poderia ter sido uma belíssima transmissão de cargo se o transmissor tivesse sido avisado a tempo de que não mais contaria, sequer para efeito de última gentileza, com a mordomia do carro preto.

Evidente que o causo não se passou exatamente dessa maneira que estou contando. Como disse, o acontecido é baseado em fatos reais, mas aqui não é lugar de vender o peixe tal e qual. Faço desse modo por confiar que não teria a menor graça ou a tristeza poderia ser ainda maior se o escrito reproduzisse fielmente a realidade. De qualquer sorte, tento fechar a seguir com um final minimamente infeliz.

***
Auditório completamente lotado, superlotado mesmo, o desembargador e sua mulher mal conseguiram entrar no ambiente da solenidade, que já estava se encaminhando para o final. Não havia mais onde sentar, obviamente, mas em situações do gênero não raro sobra algum espaço para a gentileza.

Uma jovem juíza e o marido reconheceram o ex-presidente e lhe cederam as cadeiras que os acomodavam. A Doutora fez mais. Foi até o mestre de cerimônia, posicionado ao lado da ‘mesa dos trabalhos’, e ao ouvido do rapaz deu-lhe ciência do recém-chegado. O MC repassou a notificação, também ao pé do ouvido, ao novo presidente.

Naquele instante, o novo corregedor falava aos presentes no púlpito e ao microfone especialmente colocados para os oradores. Quando acabou, o presidente assumiu a tribuna e após o tradicional pigarro começou o discurso saudando com satisfação as autoridades que prestigiavam o evento. Concluídas as saudações…

– Ah, quase cometia gafe imperdoável. Quase esquecia de registrar a presença entre nós do nosso querido desembargador… Peço a todos uma calorosa salva de palmas em reconhecimento aos relevantes serviços prestados por Sua Excelência, que agora vai se dedicar integralmente à sua adorada esposa, aos filhos, netos, enfim, às delícias de um merecido descanso e lazer que a aposentadoria nos proporciona.

Vieram os aplausos, não tão calorosos, como recomendara o presidente. Mas vieram. Levantando-se da cadeira cedida, com um sorriso contido nos lábios, o velho desembargador, de pé, curvando-se levemente, suavemente, e olhando para cada um dos cantos do auditório, agradeceu daquela forma à consideração possível de quem o aplaudia por justiça, espontaneamente, ou mesmo por exortação superior.