Concorrente forte

Rubens Nóbrega

Contam que certa figura poderosa findou-se por aqui e foi morar em outro plano do Universo. Partiu crente de que nos pósteros imperscrutáveis manteria seus poderes terrenos, inclusive o de escolher o lugar onde fruir a quietude eterna.

Com esse espírito (sem trocadilhos), a desmaterializada – mas ainda tirânica persona – foi bater inicialmente no andar de cima, onde julgava ter cadeira cativa. Atendeu-o um velhinho que fez breve entrevista com o metido a besta:

– Quem é você e o que deseja?

– Sou Fulano e só quero entrar pra ver como é, pois ainda não decidi se fico…

O atendente, de nome Pedro (foi o que deu pra ler no crachá), achou que o indivíduo estava esnobando. Mesmo assim, ligou o computador, abriu arquivo com o título ‘Liberados’, arriou no pau da venta os óculos que trazia à testa e começou a ler. Leu de cima pra baixo, de baixo pra cima, desistiu enfim da busca inútil e informou:

– Tás aqui não. Vou ter que procurar na lista dos pendentes. Mas o link é pesado demais e com esse Jampinha Digital que botaram leva uma eternidade pra baixar – disse, sem dar bola para o cidadão à sua frente, que àquela altura parecia espumar de ódio da insolência do porteiro.

“Também… Botam um Matusalém pra receber o povo. Deve ser prestador de serviço empregado por aquele outro velho lá, só pra me sacanear”, pensou o sujeito, que não fazia a menor questão de mostrar o quanto não tolerava pessoas idosas.

– Olha, de qualquer forma, se o seu nome estivesse na lista eu já saberia. Lembraria no ato, considerando o sucesso o que você fez lá por baixo. Acho melhor, portanto, você bater noutra porta. Nas profundezas, talvez… – sugeriu Pedro.

O Fulano saiu dali fumaçando, mas foi direto pro estabelecimento sugerido, onde se sentiu como se estivesse dentro de um forno em alta temperatura. Para recepcioná-lo, ainda bem, apareceu logo um funcionário chamado Sicrano de Tal.
Aguardado e admirado

Em meio a um calor infernal, a conversa entre recepcionista e recepcionado foi rapidinha e mais ou menos assim:

– Quem és? O que queres?

– Sou Fulano. Diga ao seu chefe que eu estou aqui.

– Eita! Peraí… Você é quem estou pensando? Não brinca! Rapaz, a gente tava esperando, só não contava que você viesse assim de repente, tão cedo.

– Como assim? Que história é essa que vocês já estavam me esperando?

– Oxe! Claro, amigo. Quando a gente percebe um dos nossos lá por baixo, acompanha de perto. Chega junto, dá conselho… E você nem percebe. Bem, fique aí que vou ver se o Chefe pode lhe dar uma palavrinha agora.

Minutos após, Sicrano retornou à sala de espera e anunciou: “Chefia vai te receber agora. Por aqui, faz favor”. No caminho até o gabinete do manda-brasa, o candidato a noviço ficou deslumbrado com o luxo das instalações.

Só despertou do transe quando se viu diante do chefão do lugar, que deixou muito claro estar abrindo exceção àquela audiência, não agendada, porque o padrinho do recém chegado seria muito forte.

– Temos um amigo comum que ainda permanece lá de onde vieste, cuidando de novas adesões à causa. Mantivemos contato há pouco e ele me avisou que tu estavas pra chegar. Pediu-me para arrumar uma vaguinha aqui pra ti. Mas isso é coisa que só resolvo depois de submeter o assunto à assembléia do nosso orçamento democrático.

– Quer dizer que não sou bom o suficiente pra merecer automaticamente um lugar entre vocês, sem precisar passar por essa frescura toda? – perguntou o atrevido.

– És qualificadíssimo. Até mais do que muitos que estão aqui há algum tempo. A questão não é essa. O problema é que preciso mesmo conversar com o meu povo sobre se devemos acolher ou não alguém como tu.

– Por que, hem, por acaso fiz algo tão grave assim pra ser tratado dessa forma?

– Não, não, muito pelo contrário. Na minha equipe, por exemplo, tem muito admirador do teu jeito de ser. Eles aplaudem até hoje a forma como trataste aqueles milhares de pobres coitados. Bem, agora volte pra recepção e aguarde. Vou chamar meu pessoal e decidir o que fazer.
Uma decisão cautelosa

O ansioso candidato a inquilino do abrasivo condomínio não esperou muito para saber se o seu desejo de morar ali seria atendido.
De volta ao hall, viu que após atender ao interfone o assessor Sicrano de Tal abriu um armário de onde tirou um saco de carvão e uma garrafa pet com dois litros de gasolina, material que trouxe até onde estava o visitante, a quem entregou e comunicou:

– O pessoal avaliou sua ficha e concluiu que você é um concorrente em potencial com muito potencial. De qualquer forma, em reconhecimento aos bons serviços prestados, mandaram-me dar isso aqui a você. Tome, pegue e vá fazer o seu próprio inferno, mas bem longe do nosso.

***

O que acabaram de ler (espero) é só uma adaptação de historinha criada por Ronaldo Cruz. De qualquer sorte, aviso a todos e todas que qualquer coincidência com pessoas vivas ou muito vivas é mera semelhança.