Publicado em 1968, o Ato Institucional 5 (AI-5) foi um dos 17 atos institucionais aplicados pela ditadura militar no Brasil.
A norma resultou no fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas dos estados, permitiu a cassação de mais 170 mantados legislativos, instituiu a censura prévia da imprensa e de produções artísticas e deu ao presidente a possibilidade de intervenção nos estados e municípios.
Com o AI-5 também tornaram-se ilegais as reuniões políticas não autorizadas pela polícia e toques de recolher tornaram-se frequentes.
Esses foram os principais efeitos da medida que o deputado federal Eduardo Bolsonaro defendeu recriar em entrevista publicada nesta quinta-feira (31) pela jornalista Leda Nagle. O líder do PSL na Câmara disse que o governo de Jair Bolsonaro (PSL) “precisa ter uma resposta” se a esquerda radicalizar.
O AI-5 permaneceu 10 anos em vigor e institucionalizou torturas, assassinatos, perseguições e violações de direitos humanos do regime militar. O Brasil de Fato contou essas histórias em reportagem publicada em 13 de dezembro de 2018, 50 anos após a publicação do ato pela ditadura.
Leia abaixo:
“Eu comecei a ser torturado no momento em que cheguei lá. O capitão Albernaz, que já era conhecido como um dos piores carrascos do DOI-CODI, me disse: ‘Começa a falar porque a guerra acabou pra você. Se não falar o que sabe, vai virar presunto.’ Esse era o termo que usavam no esquadrão da morte para os cadáveres que ‘surgiam’, que eram encontrados nos terrenos baldios de São Paulo, assassinados pela polícia.”
Essa é apenas uma das fortes memórias que Anivaldo Padilha, preso político da ditadura militar brasileira (1964 – 1988), carrega consigo. Militante da Ação Popular (AP), líder da juventude metodista e da articulação ecumênica no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha é um sobrevivente da repressão instaurada pelo Ato Institucional 5 (AI-5).
Assinado há exatamente 50 anos, em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 institucionalizou a perseguição política aos seus opositores e autorizou uma série de medidas de exceção. Entre elas, o fechamento do Congresso Nacional, a intervenção em estados e municípios e a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão. Mais de 170 mandatos parlamentares foram cassados no período.
Detido pela Operação Bandeirantes (OBAN), em 1970, criada com o objetivo de combater e caçar organizações que faziam oposição ao regime militar em São Paulo, Padilha ficou preso durante dez meses. Os três primeiros foram no DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão inaugurado após o golpe militar de 1964.
Ao se negar a passar informações sobre o paradeiro de outros militantes e organizações clandestinas, foi vítima de tortura frequentemente. “Falei que não sabia de nada, neguei. Fui imediatamente torturado com choques elétricos, pancadas, com a cadeira do dragão (que era uma cadeira elétrica) e ameaçado de ser colocado no pau de arara. Fui torturado durante várias horas no primeiro dia e jogado na cela”, conta o ex-preso político.
“Entrei em crise. Por um lado, já tinha experimentado o que me esperava nos próximos dias, sabia que as torturas iriam se intensificar. Claro que tinha medo, tinha medo das torturas, as dores são terríveis. Tinha medo de não conseguir aguentar. Com a dor da pancada, ao levar uma surra de ramos, era possível estabelecer certo controle, mas ainda assim era muito difícil. Com os choques elétricos não. Os choques elétricos nos levam ao desespero”, continua Padilha, indiciado por infiltração comunista na igreja metodista, a qual frequentava desde sua infância.
Para ele, o ato institucional possibilitou a fase mais sangrenta e autoritária do golpe militar. “Com o AI-5, foi estabelecido um regime de terror no Brasil muito pior do que a partir de 1964. Um regime de terror que estabeleceu a tortura como um método sistemático de interrogatório, de assassinato e de desaparecimento forçado.”
Contexto histórico
Renan Quinalha, advogado e ativista dos direitos humanos, explica que o AI-5 suspendeu todos os direitos individuais e liberdades públicas, o que fez com que o Estado não tivesse nenhum tipo de controle ou participação social. Após 1964, o processo de centralização e concentração do poder na mão do Executivo, sob comando dos militares, cresceu gradativamente, até chegar ao seu ápice em 1968.
Segundo Quinalha, o golpe militar foi uma reação aos avanços progressistas que aconteceram devido às reformas de base do governo João Goulart e mudanças culturais na sociedade. Já o AI-5 foi instaurado para exterminar a articulação da luta armada e das mobilizações estudantis em 1966, que passaram a crescer e se expandir em outros setores da sociedade. Em 1968, a Marcha dos Cem Mil, por exemplo, reuniu milhares de populares e artistas contra o regime.
“O AI-5 foi uma tentativa de endurecimento justamente porque a ditadura sentia que não estava conseguindo manter o controle da sociedade. Nem manter uma aparência de normalidade, de regularidade. Depois do AI-5 há um refluxo de todos esses movimentos. Ele interrompe esse processo de mobilização que vinha dos anos anteriores”, afirma o especialista.
A partir de então, o sistema de vigilância de informações e espionagem da ditadura passou a atuar de maneira muito mais livre, sem a possibilidade real de um controle judicial dos abusos e violações dos direitos humanos por parte dos militares.
Na opinião de Quinalha, uma das violações de direitos mais perversas do AI-5 foi a suspensão do habeas corpus, dispositivo jurídico utilizado para garantir que o acusado não tenha seu direito à liberdade ameaçado por alguma ilegalidade, qualquer violência, coação ou abuso de poder. “A partir do momento em que se acaba com o habeas corpus, se tirou qualquer possibilidade de controle judicial de pessoas presas arbitrariamente. Com o AI-5, se perdeu a possibilidade de qualquer controle dos abusos que a ditadura cometia”, comenta o professor de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Assim como Anivaldo, Aton Fon Filho também carrega as marcas da ditadura em sua história. Tinha 16 anos quando os militares tomaram o poder no Brasil e, naquele mesmo ano, se tornou membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB). No final de 1969, foi preso e torturado por sua atuação na Ação Libertadora Nacional (ALN), organização comandada por Carlos Marighella, que morrera meses antes. “Foram 9 anos, 11 meses e 3 dias. Não deixo barato nem os 3 dias”, diz Fon.
Ao ser liberado, em 1979, formou-se em Direito e se tornou advogado de causas e movimentos sociais, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ele relembra que o regime militar também era apoiado pela classe média da época devido ao processo propagandeado como o “milagre econômico” brasileiro.
“O AI-5 vem, fecha os espaços de resistência política, justamente em um momento em que estão se criando condições também para que aumente o apoio popular à ditadura. Com isso, a ditadura logrou o melhor de dois mundos: ao mesmo tempo, tinha fechado todos os espaços políticos e militarizados em todo o país, por um lado, e por outro, as medidas que tinham sido adotadas antes de 1968 continuaram a ser adotadas até 1974, e acabou ganhando apoio de massas também”, reforça o ex-preso político.
Quinalha enfatiza que a ditadura militar fez com que o Brasil se afastasse completamente dos parâmetros colocados na Declaração Universal de Direitos Humanos, que completou 70 anos na última segunda-feira (10). “O AI-5 materializa todas as violações de direitos humanos que a ditadura vai praticar de maneira massiva a partir de então”.
América Latina
Tal modelo de violações de direitos imposto pelos militares ultrapassou as fronteiras brasileiras. É o que avalia Ana Lúcia Marchiori, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e advogada de presos políticos da região do ABC Paulista. Para ela, a repressão e perseguição que acontecia no país se multiplicou pela América Latina.
“As medidas contidas no AI-5 reforçaram uma sucessão de golpes militares nos países do Cone Sul como Chile, Uruguai e Argentina. O Brasil serviu como uma ponta de lança para a implementação das ditaduras militares na América Latina e outras conspirações golpistas”, diz Marchiori. O contexto teria fomentado a articulação da Operação Condor, uma aliança político-militar entre vários regimes da América do Sul nas décadas de 1970 e 1980, apoiada pelos Estados Unidos.
Em relação à violação dos direitos humanos, Marchiori destaca que as mulheres foram duramente reprimidas pelo regime militar. “As mulheres não só eram torturadas, mas foram instrumentos de tortura para que companheiros pudessem delatar outros companheiros. Houve tortura, estupros – muitas vezes estupros coletivos – e empalamento de mulheres. Foi uma tortura física grande que se expressou e foi legitimada por esse ato institucional e por isso ele é considerado o mais truculento, o mais grave de todos.”
A jurista, que também integra o Comitê da Sociedade Civil da Comissão da Anistia, lamenta a censura à liberdade de expressão protagonizada pelos militares. “Tivemos censura das produções artísticas, diversos jornais foram proibidos de circular. Tivemos de 68 até o 78, 500 filmes, mais de 400 peças de teatro, 200 livros e incontáveis músicas que foram censuradas por conta do AI-5”.
Exemplo de resistência
Foi a fé cristã e o engajamento político de Anivaldo Padilha que fizeram com que ele pudesse resistir à tortura. Ele relata que chegou a pensar em suicídio, mas a visão de solidariedade e compaixão pelo próximo lhe deu forças para manter seu equilíbrio mental.
“Se eu achava que tinha dedicado minha vida naquela missão, minha vida já não me pertencia mais. Eu não tinha direito de tirar essa vida. Pensei: ‘Se tiver que morrer aqui, que a ditadura assuma a responsabilidade pela minha morte. O suicídio seria dar a ela uma desculpa para se livrar de mim. Suicídio seria eu fazer o trabalho que a ditadura gostaria de fazer, então, ela que faça”.
Os militares não conseguiram comprovar relações de Padilha com organizações clandestinas, mas, após ser liberado, para não correr o risco de ser preso novamente e de prejudicar sua família, foi obrigado a se exilar e retornou ao país apenas em 1984. Devido ao exílio, Padilha não pode acompanhar a primeira infância de seu filho, Alexandre Padilha, que viria a ser Ministro da Saúde no governo Dilma.
“Mesmo com tudo isso que foi representado pelo AI-5, acabamos vencedores. Quando olhei pro Alexandre, quando ele estava em Brasília como ministro, participando do governo federal… Vi sua posse, com as forças armadas (Marinha, Aeronáutica e Exército) perfiladas diante do Lula e da Dilma. Pensei: ‘Tentaram nos matar, mas estamos aqui”, conta Anivaldo, emocionado.
Em 2012, o ex-preso político foi anistiado. Na ocasião, o presidente da Comissão da Anistia pediu perdão a Anivaldo, em nome do Estado Brasileiro, o que foi muito significativo para o militante. Ele aponta que a atuação da Comissão da Anistia, assim como foi a da Comissão Nacional da Verdade, são necessárias para romper uma estrutura do silêncio que ainda existe em relação aos crimes da ditadura.
“Aquele ato de pedir perdão, do ponto de vista subjetivo é muito importante. Para mim foi. Eu fiquei muito emocionado naquela cerimônia. Ali é uma comissão de Estado e não de governo. É alguém falando em nome do Estado brasileiro”, reforça Anivaldo. “É um ato simbólico que ajuda as pessoas a conviver com a memória daquilo que sofreu. A comissão tem realizado um trabalho muito importante de manter a memória daquele período. É uma das coisas mais importantes que podemos fazer: não deixar que essa memória morra ou desapareça porque é isso que a classe dominante do Brasil gostaria de fazer, de passar uma borracha nesse passado.”
Resquícios da ditadura
Havia 73 anos que o Brasil não escolhia pelo voto direto um militar para ocupar a Presidência da República, até a eleição de Jair Bolsonaro (PSL). O último foi Eurico Gaspar Dutra (eleito em 1945). A presença de um militar no poder, acompanhado de General Hamilton Mourão como vice, suscitou receios em relação à permanência da democracia no país e ao cumprimento da Constituição Federal de 1988.
Até o momento, Bolsonaro nomeou sete integrantes das Forças Armadas para ocupar cargos ministeriais, quase um terço de todas as pastas. Aton Fon alerta que a sociedade precisa estar atenta às movimentações do novo governo.
“O resultado da última eleição mostra que, de certa forma, a massa proletária foi seduzida pelas propostas, pela argumentação do bloco imperialista, do bloco fascista. Eu diria que já estamos em uma situação que mesmo se não decorrer exatamente do mesmo modo que ocorreu em 1968 com o AI-5, há a perspectiva de que sim, [um golpe] possa se realizar”, declara Fon.
Já Renan Quinalha avalia que não há possibilidade de um golpe no “sentido tradicional”, como foi o de 1964, porque os militares estão contemplados na formação do governo Bolsonaro. No entanto, para ele, sem dúvida há a crescente militarização de um novo regime, no qual o autoritarismo se exerce de maneira mais sútil, travestindo-se de democracia.
O ativista lamenta que a violação de direitos humanos institucionalizada pelo AI-5 ainda perpetuada pelo Estado brasileiro. “Essa política que a ditadura praticava de torturas, de desaparecimentos, de execução sumária ainda hoje são praticadas contra a população jovem e negra nas periferias das grandes cidades, contra as populações indígenas e quilombolas. [São praticadas] no sistema carcerário brasileiro, para onde eram mandados os presos políticos e para onde estão os presos atuais, também marcados por graves violações de direitos humanos”, finaliza Quinalha.
Fonte: Brasil de Fato
Créditos: Brasil de Fato