A produção de conhecimento sobre o tema do uso de armas ganhou, esta semana, uma referência a mais com o lançamento do livro “Armas para quê?”, do sociólogo brasileiro Antônio Rangel Bandeira.
Estudioso no tema há 20 anos, o autor, que também ajudou a redigir o Estatuto do Desarmamento, traz os resultados de diferentes pesquisas e aborda aspectos que cercam a questão. Entre os pontos, estão o histórico do movimento antiarmas no mundo, a batalha pelo estatuto brasileiro e seus efeitos positivos, as características do universo do uso de armas no país e os caminhos possíveis para se combater a violência armada.
Para o especialista, uma conclusão parece certa: ao ensaiar a ampliação do uso de armas, o Brasil caminha na contramão do mundo.
“O único país no mundo que regride no momento é o Brasil. É uma coisa impressionante. Até nos Estados Unidos, por causa da pressão crescente, motivada pelos massacres constantes, o Trump está começando a mudar o discurso ultimamente. E foi ele que liberou que pessoas com problemas mentais pudessem comprar armas, derrubou a exigência de atestado de sanidade mental, derrubou a lei anterior que proibia a venda de fuzis de guerra”, destaca, acrescentando que as políticas contra o uso de armas se espalha por outros continentes.
Segundo ele, a Suíça sempre foi considerada um paradigma pros armamentistas. “Os homens lá prestam o serviço militar durante décadas e têm dentro de casa um fuzil de guerra num cofre, só pra dar uma ideia. É um país muito armado e teve um plebiscito recentemente em que 94% da população votaram pelo controle de arma. A Nova Zelândia, que tinha uma das leis mais liberais, já fez o mesmo que tinha feito a Austrália um tempo atrás: passou a restringir fortemente”, exemplifica Bandeira, que atuou no Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes, em Viena, na Áustria.
O sociólogo alerta que a expansão do uso desses artefatos no Brasil tende a dilatar as estatísticas da violência no país, que tem 3% da população mundial e responde por 14% dos homicídios por arma de fogo, segundo dados oficiais.
“Aqui, temos uma população enorme e 88% das armas pequenas estão nas mãos da população. É um dos lugares onde a população tem mais arma e ainda ficam nesse discurso de que tem que armar as pessoas porque elas estariam desarmadas. É o oposto, e tem muita morte porque tem muita arma. Em 2017, morreram aqui, por homicídio doloso por arma de fogo, 47.500 pessoas. No mesmo ano, no Japão, por exemplo, morreram três pessoas, e aqui foram 130 por dia”, compara.
Lobby
A ação incisiva e tentacular do lobby também é objeto de análise do sociólogo, para quem não é possível deixar de apontar a relação entre a indústria armamentista, maior interessada no fluxo e no comércio desse tipo de artefato, e parlamentares da chamada “bancada da bala”.
No livro, o autor aborda o financiamento das campanhas desses políticos por parte das empresas do ramo em 2014, quando o custeio privado de campanhas ainda não havia sido vetado no país.
Forte defensora de medidas de caráter punitivista, a bancada da bala aglutina deputados federais e senadores e é hoje uma das maiores responsáveis pela defesa midiática da revogação do Estatuto do Desarmamento no país. A relação entre o grupo e a indústria das armas não passa despercebida aos olhos de quem acompanha o debate.
“É um lobby que, em qualquer país que fosse mais democrático, não teria o menor êxito, porque eles não têm pesquisa. Os argumentos deles são puramente ideológicos, por agressividade. E por que fazem tanto sucesso? Porque o Brasil é muito violento e, sendo muito violento, você tem dois sentimentos muito alastrados: medo e raiva”.
Bandeira aponta que tais fatores fortalecem o discurso pró-armas no Brasil, usado por Jair Bolsonaro (PSL) na campanha presidencial.
“Esses sentimentos são muito fortes. Freud estuda isso. E são facilmente manipulados. Então, você está apavorado, está com medo e quer proteção. Aí as pessoas querem um suposto santo, um mito, um ditador. É o que a direita faz nos Estados Unidos também, por exemplo. Eles manipulam o medo e a raiva. Quando a atitude da população se dá na base do emocional, ela é volúvel, muda com muita facilidade”, analisa o sociólogo.
Estatuto do Desarmamento
O autor destaca a contribuição que o Estatuto do Desarmamento, política de controle de armas, tem dado ao país desde 2003, quando entrou em vigor. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, nos 14 anos anteriores à legislação, a média de crescimento da violência armada era de 5,4% ao mês no país, enquanto, nos 14 anos seguintes, o crescimento verificado foi de 0,82%. O Ipea mostrou que, com isso, a legislação poupou a vida de 197 mil pessoas. .
“O Estatuto tem sido um dique pra impedir que a violência continue se multiplicando como se multiplicava antes. Isoladamente, ele foi a medida mais eficiente contra a violência tomada no Brasil nos últimos 50 anos”, ressalta Bandeira. Ele destaca também que 70% dos brasileiros se mostram contra a facilitação do porte de armas, uma das bandeiras do governo Bolsonaro. O índice foi medido pelo Datafolha em julho deste ano.
O estatuto virou referência para a ONU e oito países que se inspiraram na norma brasileira para produzir uma legislação própria sobre o tema.
Soluções
O sociólogo aponta que o tema da violência é considerado de grande complexidade em todo o mundo, exigindo uma combinação de medidas que vão além do controle de armas.
No livro recém-publicado, o autor destaca, por exemplo, a reforma da polícia.
“A polícia tem que ser solução e, no Brasil, ela é uma parte fundamental do problema. Aqui, os policiais não sabem nem atirar e treinam nas ruas, matando inocentes. A democratização aqui não atingiu todas as áreas. A polícia, que já era ruim, piorou na ditadura e ela não foi democratizada. Então, precisa de uma reforma nesse sentido”, defende o pesquisador, que já ministrou treinamentos sobre controle de armas para policiais, militares e ONGs de 19 países.
Para Bandeira, “não há bala de prata” ou solução única capaz de contemplar a densidade do problema, mas ele aponta também a necessidade dos investimentos em educação.
“Mas não é qualquer educação. Depende da educação, porque Hitler, por exemplo, educava o povo alemão pra ser racista. Tem que ser uma educação pacifista, de diálogo, de tolerância”, finaliza.
Fonte: Brasil de Fato
Créditos: Brasil de Fato