durante o parto

VIDA DA MULHER x FETO: MPF contesta resolução que dá autonomia a médicos contra vontade das grávidas

Norma ética do Conselho Federal de Medicina inclui impossibilidade de recusa de tratamento por gestantes caso profissionais de saúde vejam prejuízo ao feto

Medida do CFM gerou polêmica Foto: Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Uma resolução publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no último dia 16 está sendo contestada pelo Ministério Público Federal (MPF) por permitir que a autonomia da mãe na escolha de procedimentos durante o parto seja caracterizada como abuso de direito da mulher em relação ao feto.

Publicado no Diário Oficial da União, o texto do CFM delimita as situações em que um paciente pode recusar tratamento e determina como os médicos devem agir nesses casos. A resolução aponta situações em que a “recusa terapêutica” não deve ser aceita pelo médico, como quando colocar em risco a saúde de terceiros —por exemplo, na rejeição ao tratamento de doença transmissível.

O ponto do texto que causou polêmica entre profissionais da área e levou à atuação do MPF diz respeito às gestantes: no caso delas, diz a norma, a recusa terapêutica deve ser analisada “na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.

Se a gestante não quiser, por exemplo, fazer uma cesárea na hora do parto ou submeter-se a procedimentos como a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de passagem do bebê), e o médico considerar que tais medidas são necessárias para a saúde do bebê, o profissional é avalizado pelo CFM a acionar as autoridades, se assim decidir, incluindo o Ministério Público, para “tomada das providências necessárias visando assegurar o tratamento proposto”. Antes da resolução, diz o CFM, este ato poderia ser considerado quebra do sigilo médico.

O mesmo entendimento utilizado no caso do parto vale, segundo a entidade médica, por exemplo, para o uso de determinadas medicações ou exames, como transfusão de sangue, vacina ou o início de tratamentos contra o HIV, ainda durante a gestação.

A resolução do CFM não tem força de lei, mas funciona como guia ético para os profissionais. Ela também regulamenta a objeção de consciência do médico, ou seja, quando ele deixa de realizar condutas que, embora permitidas por lei, são contrárias à sua consciência.

Em recomendação expedida na última quarta-feira (25) e assinada por 16 procuradores de nove estados, o MPF pede que o CFM revogue os artigos da resolução que tratam da assistência a grávidas, “reconhecendo que apenas em casos de iminente risco de morte o médico poderá adotar medidas em contrariedade ao desejo materno”.

Segundo o MPF, a aplicação das novas regras tende a favorecer cesarianas e procedimentos desnecessários. “Além de contrariar o Código de Ética Médica, o desrespeito à autonomia da gestante também configura crime”, dizem os procuradores. Eles afirmam que “os profissionais que agirem conforme a Resolução nº 2232/2019 poderão responder por constrangimento ilegal”.

O CFM afirmou, em nota, que a resolução não foi elaborada com foco na saúde materna, e que, nesse tema, “não identificamos inconstitucionalidade em considerar abuso de poder a recusa terapêutica materna em realizar um procedimento que afastará o perigo à vida do filho”.

Como comparação, cita o exemplo de “pais que se recusam a autorizar ou a permitir o tratamento de uma criança, expondo-a a perigo, retirando-a do hospital sem alta médica” e diz que “há precedentes nacionais e estrangeiros de intervenção judicial em situações semelhantes, todas decididas em favor do melhor interesse da criança”.

‘Medida perigosa’

Grupos de ginecologistas e obstetras vêm debatendo a resolução desde sua publicação. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia afirmou que o texto “pode auxiliar os colegas a continuar prestando atendimento médico às gestantes”.

“Recomendamos aos colegas associados que procurem aplicar as melhores práticas obstétricas, respeitando a autonomia da paciente, mas não se esquecendo dos princípios da não maleficência e da proporcionalidade, que nos resguardam o direito de executar o que é recomendado cientificamente para o binômio mãe-feto”, diz o texto da instituição.

Vozes de destaque no meio, no entanto, temem que a norma seja uma brecha para legitimar práticas já não indicadas pela Organização Mundial da Saúde e consideradas ineficazes, como a episiotomia.

A ginecologista e obstetra Ana Teresa Derraik, do Nosso Instituto, organização com foco em direitos sexuais reprodutivos, afirma que a resolução elimina o poder de escolha das mulheres.

— A nova norma do CFM é perigosa pois pode ser utilizada como justificativa para procedimentos que abreviam o período do parto contra a vontade da mulher — diz ela.

O argumento de que há risco ao feto poderia ser usado, diz a médica, para justificar práticas obsoletas, como a episiotomia ou a manobra de Kristeller, em que se aperta o fundo do útero, empurrando o feto para baixo.

— A assistência ao parto é historicamente muito violenta, e essas condutas, no passado, eram tidas como padrão. A resolução do CFM parece resgatar condutas que motivaram críticas de profissionais e das mulheres para caírem em desuso.

A médica acrescenta que quem pode sofrer mais as consequências desta resolução são as mulheres pobres, negras e de baixa escolaridade, “que já são hoje as principais vítimas de violência obstétrica”. O termo é utilizado para designar maus-tratos — físicos ou verbais — ocorridos durante o parto.

‘Forma retrógrada’

Professora Associada de Ginecologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, Melania Amorim, que faz parte da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, acredita que a “autonomia feminina fica seriamente ameaçada” com a resolução do CFM.

— Realizar procedimentos no corpo das mulheres sem seu consentimento deveria constituir infração ética grave, salvo em condições de risco iminente de morte. Não se justificam ressalvas em nome de direitos e supostos benefícios ao feto — diz. — O corpo da mulher é da mulher e ela não pode ser considerada mero repositório do feto.

Membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, ela considera que a norma se equipara ao Estatuto do Nascituro, projeto de lei em tramitação no Congresso sobre o direito do feto que prevê, entre outras medidas, a aprovação de uma “bolsa” para mulheres vítimas de estupro que decidirem prosseguir com a gravidez.

Amorim argumenta que a resolução do CFM também parte do princípio de que os direitos – e a saúde – do feto se sobrepõem aos da mulher.

— O CFM claramente vem se posicionando de forma retrógrada em relação aos direitos sexuais e reprodutivos — pontua, acrescentando que a Rede pretende iniciar uma mobilização com outras ONGs para pressionar o Ministério Públuico a denunciar a norma.

Artigo na resolução sobre exceção

São considerados casos de abuso de direito, segundo a Resolução, aqueles em que a recusa terapêutica pode colocar em risco a saúde de terceiros. Além disso, a recusa não aplica ao tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação. Quando manifestada por gestante, a recusa terapêutica também deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe e feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.

 

Fonte: O Globo
Créditos: Ana Paula Blower