“Existe muito em prol de se tornar natural o que não é natural. Mas ninguém está dizendo para você que você pode decidir não continuar com esse estilo de vida”, sugere Deuza Avellar, psicóloga, membro da Primeira Igreja Batista de Curitiba e autointitulada “ativista pró-família”, em um vídeo gravado em uma bucólica fazenda no interior do Paraná. De blusão roxo, ela se senta entre dois homens que compartilham seu testemunho: ex-homossexuais que, com ajuda religiosa e psicológica, abandonaram o “estilo de vida” e se converteram em pastores evangélicos. “Se você acha que é [homossexual], eu digo que você está. Não é uma condição permanente”, garante a psicóloga.
O vídeo é apenas um entre vários conteúdos compartilhados por Deuza ao longo de anos de militância pelo tratamento psicológico para lésbicas, gays, bissexuais e transexuais se tornarem ex-homossexuais. A novidade é que, agora, ela é vice-presidente de uma chapa que concorre ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) e que tem como um dos principais objetivos mudar a regulamentação profissional para permitir que psicólogos ofereçam o tratamento.
O grupo de Deuza, chamado Psicólogos em Ação, resumiu as principais propostas da chapa em um panfleto com dez medidas, segundo eles, para acabar com o aparelhamento ideológico do CFP. Entre as promessas da chapa, está a revogação de duas resoluções do conselho que proíbem tratamento de conversão a pessoas LGBTQI+: a primeira, de 1999, que determina que “psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”; e a segunda, de 2018, que reforça a proibição a “terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero”, além de proibir “qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis”.
Além da campanha nas redes sociais, no início deste mês, membros dos Psicólogos em Ação se encontraram com a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Deuza e outros psicólogos reuniram-se com Damares a pretexto de apresentar o “Movimento Ex-Gays do Brasil”, organização recém-criada que diz ajudar “pessoas convertidas ao evangelho de Cristo, que por convicção espiritual nesse processo não mais desejam caminhar na homossexualidade”.
No final de 2018, foi Deuza quem apresentou Damares ao público do congresso Sexualidade e os Desafios da Igreja, da Primeira Igreja Batista de Curitiba. Durante o evento, aos gritos de “é guerra”, Damares afirmou existir “um monte de mulher-pirata no Brasil, que não têm útero, não têm vagina, que estão se dizendo mulher”.
A Agência Pública questionou o ministério de Damares sobre a agenda do encontro e se o ministério está desenvolvendo alguma ação ou programa que contemple o movimento de ex-gays. A reportagem perguntou também à ministra qual a sua posição sobre “terapias de reversão” e sobre a criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nenhum dos questionamentos foi respondido até a publicação da reportagem.
A Pública procurou também a Secretaria de Proteção Global – pasta indicada por Damares para lidar com demandas LGBTQI+ –, que confirmou que seu secretário-adjunto, Alexandre Magno, reuniu-se com o movimento de ex-gays. Segundo a assessoria, o grupo pediu “garantia de direitos e reconhecimento para que a nomenclatura ex-gay seja reconhecida sem serem ridicularizados ou perseguidos” e “relatou que sofre perseguição e recebe ameaças nas redes sociais”. A secretaria acrescentou que “em nenhum momento da reunião foi tratado sobre cura gay, a pauta principal era liberdade de expressão”. O titular da secretaria, o secretário nacional de Proteção Global, Sérgio Queiroz, é pastor da Primeira Igreja Batista de João Pessoa, mesma denominação de Deuza.
Deuza foi procurada pela reportagem também para falar sobre sua participação no Movimento Ex-Gays do Brasil e sobre as reivindicações do movimento ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Pública perguntou à psicóloga se, caso levem à frente a proposta de derrubar as resoluções do conselho, haveria alguma regra ou protocolo para as terapias de reversão ou uma idade mínima para alguém passar por essas terapias. Por fim, a reportagem indagou se as terapias de reversão funcionam apenas para homossexuais insatisfeitos ou servem também para heterossexuais que não desejam mais ser heterossexuais. Nada foi respondido pela psicóloga.
A nova roupa da “cura gay”
O discurso de Rozângela em defesa do tratamento de pessoas LGBTQI+ não é mais aquele de 2008, em que, em um seminário sobre influência da pornografia no abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes na Câmara dos Deputados, chegou a afirmar categoricamente que “os travestis e muitas pessoas que desenvolveram a homossexualidade sempre têm uma experiência de abuso sexual”. A psicóloga ainda acrescentou que “a homossexualidade pode ser um transtorno de orientação, de comportamento ou de preferência sexual, e pode haver vários transtornos junto com a homossexualidade”, disse.
No ano seguinte, em entrevista à Folha de S.Paulo, Rozângela Justino referiu-se claramente ao homossexualismo [sic] como “uma doença”. “E uma doença que estão querendo implantar em toda a sociedade”, disse na entrevista, em que voltou a associar a homossexualidade ao abuso sexual contra crianças e disse haver “uma ditadura gay” e uma “Santa Inquisição para heterossexuais”.
Mais recentemente, a psicóloga passou a afirmar que não considera a homossexualidade uma doença e a questionar quem chama seu tratamento de “cura gay” – Rozângela chegou a processar a Rede Globo pelo uso do termo em reportagens no Jornal Nacional e do Fantástico, em 2017. O juiz Julio Roberto dos Reis, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, condenou a emissora a pagar R$ 170 mil em indenização por danos morais ao grupo de psicólogos.
Em um vídeo postado em julho deste ano, em campanha para eleição ao CFP, Rozângela disse que nunca prometeu cura de “transtorno psicológico, desordem mental ou disforia”, mas que ex-gays existem: “Basta acessar na internet e vocês irão constatar a existência de pessoas que deixaram o comportamento homossexual” e “que estão livres da atração sexual indesejada por pessoas do mesmo sexo”.
O termo técnico utilizado por Rozângela e Deuza, que se apresentam como psicólogas cristãs, para defender o tratamento para LGBTQI+ é: “egodistônico”. Segundo elas, os homossexuais egodistônicos estão em conflito com o desejo por uma pessoa do mesmo sexo e querem ressignificar esse desejo, para acabar com um sofrimento psíquico intenso que pode gerar quadros de depressão, ansiedade e outros.
Para a maioria dos pesquisadores, críticos às “terapias de reorientação”, é justamente essa tentativa de combater o desejo que causa o sofrimento. Um estudo focado em jovens lésbicas, gays e bissexuais feito pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, mostrou que esse grupo tem uma propensão cinco vezes maior ao suicídio que pessoas heterossexuais – mas o fator determinante é justamente o suporte social e familiar que esses jovens recebem. O estudo destacou que os riscos a problemas psíquicos não estão associados à sexualidade em si, mas sim a como as pessoas ao redor tratavam os jovens por conta da sua sexualidade.
“[O conceito de egodistônico] é genérico e daí cabe qualquer coisa. É uma visão muito antiga”, afirma João Fortes, psicólogo e presidente da chapa Fortalecer a Profissão, que concorre com a Psicólogos em Ação. “Nós podemos ser procurados por pessoas que estão se questionando sobre a sexualidade e trabalhar essas questões, que são apresentadas pelo próprio paciente. O que nós não podemos é desviar o foco desse tema, tentando desfocar o tema para não falar o que realmente é pregado: a cura gay”, declara. Para ele, os defensores das terapias de reversão não possuem respaldo científico e misturam religião à profissão.
O CFP produziu uma pesquisa que reuniu relatos de pessoas LGBTQI+ que passaram por situações de preconceito, abandono e terapias de reversão. Entre os casos apresentados há o uso de argumentos religiosos por profissionais da psicologia com o objetivo de provar que suas sexualidades estavam “erradas”, além de induzirem os pacientes a acreditar que ser gay é sinônimo de infelicidade.