Nunca foi fácil interpretar o Brasil. Como disse Tom Jobim um dia, nosso país não é para principiantes. Ainda mais o Brasil de hoje, que parece ter saído do delírio surrealista de alguma mente tresloucada. Mas no meio de tanta ideia confusa, de tanto atabalhoamento, de tanta formulação obscura propositalmente utilizada para enganar e esconder, não deixa de ter vigorosa força simbólica o fato de que – 519 anos depois do início dessa confusão em que estamos metidos – a luz da clareza nos seja oferecida justamente por um índio. Eu ouvi Ailton Krenak dizer na televisão: o Brasil está em colapso afetivo. E ele explicou: a floresta é fonte de vida, os rios são fontes de vida. Só uma sociedade em colapso afetivo pode ver a floresta como ameaça e transformar um rio em esgoto.
Ailton Krenak nasceu na margem esquerda do Doce, em Minas Gerais, o rio imenso soterrado pela avalanche de lama, destruição e morte da mineradora Samarco. Liderança de prestígio internacional, Ailton carrega sua etnia no nome, junção de dois vocábulos que significam cabeça (kre) e terra (nak). Vejo essa mesma poética do nome de Ailton presente em todas as 64 páginas do estupendo livro que ele acaba de lançar: Ideias para adiar o fim do mundo. Para ele, um conceito de humanidade separado do de natureza nos leva a uma arrogância autodestrutiva, “uma humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.
Mas há, no livro, um outro argumento poderoso: o de que vivemos um tempo de ausências, em que o próprio sentido da experiência da vida está em jogo. A intolerância crescente é um claro sinal disso. Quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar é alvo do ódio de uma sociedade doente que refuta a celebração da vida. As artes, o cinema, a ciência, a educação, a liberdade de expressão e tudo aquilo que promove a elevação do espírito humano causam reação de repulsa em criaturas afetivamente colapsadas. É esse sentimento obscuro que legitima, por exemplo, a censura a exposições de cartuns, livros e filmes; os ataques à comunidade científica e à universidade; o desmonte da legislação ambiental; a criminalização de movimentos sociais e o aumento da violência policial na periferia de nossas metrópoles.
Como egresso da UFSM, santa-mariense e defensor da educação pública de qualidade em todos os níveis como saída-chave para resolução dos problemas brasileiros, senti particularmente esse colapso afetivo atingindo parte de nossa cidade. Uma instituição reconhecidamente meritória, avaliada e ranqueada positivamente como a 12ª universidade mais empreendedora do Brasil, passou a ser atacada por pessoas e entidades que questionam o tamanho de seu orçamento. Para esses críticos, que nunca apresentam nenhum dado concreto, nenhuma base real, a UFSM “gasta muito”. Foi como se cuspíssemos no nosso rio de conhecimento e prosperidade, foi como se enxovalhássemos a memória dos pioneiros que levaram adiante o sonho épico de produzir ciência brasileira numa universidade do interior. Que os índios nos ensinem a recuperar o afeto perdido.
*publicado no Diário de Santa Maria em 11/09/2019
Fonte: Marcelo Canellas – Facebook
Créditos: Marcelo Canellas