O presidente Jair Bolsonaro passou os dois últimos dias envolto em declarações polêmicas sobre a ditadura militar (1964-1985) no país. Na segunda-feira, ao ser perguntado em entrevista no Palácio do Planalto o que achava da posição de Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre a investigação da facada que recebeu em Juiz de Fora, no ano passado, ele atacou o presidente da entidade, Felipe Santa Cruz. “Um dia se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer saber a verdade”. disse.
Vinte e quatro horas depois, Bolsonaro reafirmou o que disse e atacou a Comissão Nacional da Verdade, que investigou mortes e desaparecimentos na ditadura. Ao deixar o Palácio da Alvorada na manhã de ontem, ele declarou. “Não tem nada escrito que foi isso, foi aquilo. Meu sentimento era esse”, disse. E chamou de “balela” a Comissão da Verdade: “Você acredita na Comissão da Verdade? Qual foi a composição da comissão? Foram sete pessoas indicadas pela Dilma. A questão de 64, não existem documentos se matou, não matou, isso aí é balela”.
As próprias Forças Armadas que apontam que Santa Cruz desapareceu após ser preso durante o regime militar. De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o estudante e funcionário público Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi visto pela última vez por sua família ao deixar a casa do irmão, no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974, um sábado de carnaval.
Como já sabia que estava sendo monitorado pelos militares, Fernando avisou aos familiares que, caso não voltasse até as 18h do mesmo dia, provavelmente teria sido preso. Ele foi preso com um amigo que também militava contra a ditadura por agentes do DOI-Codi do 1º Exército, no Rio de Janeiro, e nunca mais foi encontrado. A família começou longo processo de mobilização para saber onde ele havia sido preso e procurou vários órgãos oficiais do governo, sem receber posição oficial. Em carta enviada à família, um tenente-coronel do Exército informou que não sabia sobre o paradeiro de Santa Cruz e que ele não tinha sido preso. Em 1978, um documento da Aeronáutica reconheceu a detenção do militante.
HIPÓTESES
Conforme o relatório da Comissão da Verdade, existem duas hipóteses sobre o desaparecimento. Em uma delas, o estudante foi levado do Rio de Janeiro para outra unidade do DOI-Codi de São Paulo, onde foi assassinado e sepultado como indigente no Cemitério Dom Bosco, na Zona Norte da capital paulista. A outra hipótese é que ele foi levado para a Casa da Morte, em Petrópolis, local em que ocorreram torturas e assassinatos de presos políticos, sendo depois morto e incinerado em uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes (RJ).
O comando do Exército afirmou ontem não dispor de informações sobre o desaparecimento de Fernando Augusto Santa Cruz. Em nota oficial, o Exército disse: “Não há nos arquivos do Exército Brasileiro documentos e registros sigilosos produzidos entre os anos de 1964 e 1985, tendo em vista que foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época.” O Exército se refere ao Regulamento de Salvaguarda de Assuntos Sigilosos, que autorizava a destruição de documentos, o que hoje é vedado pela Lei de Acesso à Informação.
A fala de Bolsonaro foi rebatida duramente pelos integrantes da comissão, que durante três anos apurou dados obscuros sobre os porões da ditadura. “A prova do bom trabalho que a comissão fez para o país está no descontentamento do presidente Bolsonaro. Ficaria assustado se ele aprovasse o trabalho que desvendou muitos atos até então escondidos durante o regime militar”, analisou o ex-ministro da Justiça e advogado criminalista José Carlos Dias, que coordenou os trabalhos do grupo entre 2013 e 2014.
Membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – grupo criado neste ano com personalidades do meio jurídico, acadêmico e político em defesa dos direitos humanos –, José Carlos considera que a declaração ofensiva de Bolsonaro pode ser considerada crime de responsabilidade. “Essa fala sobre Fernando Santa Cruz é absurda. O militante foi vítima do Estado, ao que tudo indica assassinado na Casa da Morte e teve seu corpo incinerado. A Comissão Arns entrará como amicus curiaes na ação que a OAB entrará no Supremo Tribunal Federal”, disse Dias.
O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, que também participou na Comissão da Verdade, afirmou que o grupo foi instaurado após ampla discussão com todos os setores da sociedade brasileira, inclusive com as Forças Armadas. O jurista ressaltou que o Brasil foi o último na América Latina a instalar uma comissão para apurar fatos ocorridos durante o regime militar. “A CNV não foi uma comissão de governo. Ela foi uma comissão de Estado”, afirmou Dipp.
ATAQUES DESDE 2010
Os ataques à Comissão Nacional da Verdade não são inéditos na trajetória política de Bolsonaro. Como deputado federal, o capitão reformado do Exército foi um dos principais críticos ao grupo desde que o projeto de lei para a criação da CNV chegou ao Parlamento, em 2010. “Essa comissão não quer a verdade. Os sete membros são indicados pela recém-eleita presidente da República. É a mesma coisa que colocar sete traficantes do Morro do Alemão para julgar o Fernandinho Beira-Mar. Ele seria absolvido com certeza”, afirmou Bolsonaro em audiência na Câmara que discutia a formação da comissão.
Dois anos depois, já com a comissão formada, o então deputado Bolsonaro voltou a disparar contra o grupo e defender o golpe militar de 1964. “Os militares assumiram o governo por imposição da sociedade, da mídia, dos empresários e da Igreja. Eu quero a memória e a verdade, mas essa comissão vai ser a comissão da calúnia. Vamos apurar fatos sobre a presidente Dilma, cujo primeiro marido sequestrou um avião e foi para Cuba e participou da execução de um major alemão? Ou do segundo marido, que confessou que roubava bancos, assaltava caminhões de carga? Onde enfiaram os R$ 3 milhões que roubaram do Ademar? Que verdade é essa que querem alcançar? É uma farsa”, gritou o deputado durante audiência na Câmara.
No Parlamento, Bolsonaro fez vários discursos em defesa da atuação de militares entre 1964 e 1985, afirmando que se não fossem as Forças Armadas o país teria se transformado em uma “ditadura comunista”. Em 2016, durante a votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), ele dedicou seu voto a Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e responsável por comandar torturas e assassinatos de presos políticos no regime militar.
Fonte: Em.com
Créditos: Polêmica Paraíba