Desde a estreia da primeira temporada (T1), em 1.º de dezembro de 2017, a série Dark tem sido um dos fenômenos mais comentados do audiovisual. Criada por Baran bo Odar e Jantje Friese, esta primeira produção alemã da Netflix tem mobilizado fãs em todo mundo. Os motivos são diversos. Mas o principal se refere à complexidade estrutural e intelectual.
A segunda temporada (T2), que acaba de estrear (21 de junho), conseguiu aprofundar ainda mais as conexões, teorias e conflitos dispersos na primeira. Com esta T2, Dark teve uma avaliação positiva da crítica que chegou a 100% de unanimidade. Tanto que a Netflix já confirmou a contratação da 3.ª temporada, encerrando a série em uma trilogia.
A série gira em torno de cinco núcleos familiares: os Dopler, os Kahnwald, os Nielsen, os Obendorf e os Tiedemann. Contudo, o eixo de organização de Dark são as viagens no espaço-tempo por meio de uma caverna situada na floresta de Winden (Alemanha), no subsolo de uma usina nuclear. Aos poucos o espectador percebe que tais viagens foram propiciadas por um acidente nuclear e por máquinas do tempo concebidas nos interstícios entre passado, presente e futuro.
Essas viagens obedecem à regra ficcional dos 33 anos. Desse modo, na primeira temporada a ação dramática se passa simultaneamente nos anos de 1953, 1986 e 2019. A T2 se passa um ano depois da T1 (1954, 1987 e 2020), uma estratégia para demarcar o devir do próprio tempo dentro da série. E a T2 também acrescenta dois planos temporais: 2053 e 1921.
Além dessa interseção de planos espaciotemporais, a série tem uma estrutura multilinear (multiplot), ou seja, múltiplos núcleos dramáticos. Os principais seriam quatro: Jonas e suas descobertas, as investigações sobre Mikkel e as crianças desaparecidas, os personagens em torno da usina e os personagens que gravitam em torno do enigma do espaço-tempo.
Correndo paralelo a esses quatro núcleos, há personagens que funcionam como pontos cegos: o escritor-cientista H. G. Tannhaus, que concebeu a viagem no tempo em um livro e criou a máquina do tempo, Noah, o agente transtemporal dos viajantes, e Adam, personagem coringa apresentado em T2 e mentor da seita que coordena as viagens. A revelação sobre a sua identidade é uma das reviravoltas mais bem armadas da T2.
Há muitas teorias em Dark: emaranhamento quântico, princípio de não localidade, paralaxe, topologias alternativas ao paradigma Minkowski, as relatividades geral e restrita de Einstein, espaços não euclidianos, dentre outras. Entretanto, a conexão de eventos, personagens, temporalidades e mundos é extremamente bem construída. Também explora conceitos oriundos da metafísica contemporânea, área da filosofia que estuda as condições de possibilidade e os limites do conhecimento.
Dentre esses problemas metafísicos, a T1 destaca sobretudo a hipótese do multiverso e dos buracos de minhoca (wormholes): o universo observável seria apenas uma corda de um tecido de universos paralelos, possíveis e existentes. Uma fissão nuclear poderia criar artificialmente um desses acessos a outros universos, regidos por outras leis e inscritos em outras dimensões do espaço-tempo. A T2 integra outras duas grandes teorias: o Paradoxo de Bootstrap e Bóson de Higgs.
A primeira diz respeito ao paradoxo da viagem da informação através do tempo. Se um objeto futuro viajasse para o passado, este objeto transformar-se-ia ao longo do tempo no mesmo objeto que veio do futuro? Nesse sentido, como seria possível esse objeto futuro preexistir no futuro se não tivesse sido criado por si mesmo no passado? Trata-se do problema metafísico da distinção entre existências atuais, virtuais e potenciais.
A segunda trata da partícula responsável por conferir massa a todas as partículas do universo. O bóson pode ser uma das chaves de compreensão dos enigmas que envolvem a constituição primitiva da matéria, e, por conseguinte, do espaço e do tempo. Nesse sentido, o bóson pode se relacionar com a energia e a matéria escuras, prováveis fontes de inspiração para o nome da série.
Em T2, alguns recursos narrativos de identificação e explicação, como os mapas, álbuns, cartas e fotos, são empregados com muita insistência. A recorrência da máquina do tempo em forma de maleta é um pouco incômoda. E o caos dos personagens, seres e eventos nos diversos mundos, tempos e espaços acaba suprimindo um tratamento um pouco mais vertical para cada célula dramática que compõe o todo.
Entretanto, como diz uma das premissas que encerra a T2, o problema não é quando, mas onde. A espacialização do tempo e a multiplicação de mundos a partir de unidades temporais não discretas talvez sejam a grande inovação para as narrativas de viagem no tempo. Nesse sentido, Dark é excepcional. Já nasceu clássica. Mesmo antes de seu fim, pode-se considerar que o seu futuro brilhante se realizou plenamente.
*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR TITULAR DA FAAP, DESENVOLVE PÓS-DOUTORADO NO CENTRO DE TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC-SP)
Fonte: Estadão
Créditos: Estadão