O homem que adorava os outros

Gilvan Freire

A vida, ainda que longa, é breve, e deve ser vivida intensamente. E utilmente. Além de tudo, a vida é precária, porque não oferece certeza de nada. Esgota-se a qualquer momento. É obrigatoriamente finita e falível.

Mas, quaisquer que sejam as incertezas da vida, inclusive a insegurança quanto a sua duração, o importante é vivê-la plena, como quem vai viver eternamente. Viver como quem não morre, corajosamente, confiantemente, sem medo de morrer. Se houver muito medo, morre-se de medo, antes do tempo. Todos os medrosos morrem de véspera, e os corajosos morrem, pelo menos, algum tempo depois.

Problema essencial da vida são as relações humanas. Por causa delas a vida se projeta além do dono e passa a ter outros usuários. Coisa curiosa: ninguém vive só para si mesmo. Não valeria a pena. Seria um estrago, uma coisa inútil. Certamente não faria ninguém feliz. Morresse um ser humano isolado dos outros, nem haveria lamentos, nem choro. Ninguém se lembraria dele. Daquela vida não haveria notícia ou memória. Para o mundo exterior, seria uma existência inexistente.

Outra coisa dramática é a hora da morte consciente, aquela em que o dono sabe que está chegando ao fim, que tem de devolver o que tomou emprestado a Deus e usou conforme os critérios do bem ou do mal, da justiça ou da injustiça, da caridade ou da crueldade, da integridade ou da improbidade. No encontro final da vida consciente com a morte inevitável o que dá conformação é esse balanço. E somente a obra do bem dará uma conformação feliz. Triste, é verdade, mas feliz. Nem os injustos querem morrer, mas somente os justos têm a sensação terminal de que a vida não foi vivida em vão.

RONALDO CUNHA LIMA devolveu ao Senhor um presente que recebeu para fazer uso coletivo. Deus tem desses caprichos diferenciados para emprestar a alguns os dons que, ao que parece, não desejou dar a todos, para que os escolhidos, os ungidos, possam dar mais de si aos demais. Com Ronaldo, Deus esmerou-se. E ficou muito robusta a prova de seus acertos. Deus sempre tem razão.

Morreu o homem que amava os outros. O homem bom, do bem, capaz de ser ele próprio e uma multidão ao mesmo tempo. O homem que trocou a sua alma pela alma do povo, como se fosse um ser coletivo no lugar do individual. Foi amado tão intensamente quanto amou e desenvolveu um coração gigante e bravo que foi o último amigo intimo a se despedir dele. Foi comovente e dolorosa essa separação.

Não se diga que Ronaldo não deveria ter morrido, porque todos morrem. Há de se dizer doravante, como notícia aos tempos e memórias aos homens de boa vontade que Ronaldo Cunha Lima simplesmente viveu. Viveu plenamente. Utilmente.

Quando Deus erra presenteando a vida aos desalmados, imediatamente corrige o desacerto e põe no mundo um ser excepcional, um Ronaldo Cunha Lima, com a vantagem de que entre o bom e o mau ser, somente o bom amará e será amado. Mesmo que, pelo bem ou pelo mal, sejam os dois lembrados. Um pelos castigos, e o outro pelas dádivas do mesmo Criador. Este é outro capricho de Deus a parte. E o saldo final.

Quando a vida foge, ou deserta, ou viaja, o saldo fica em seu lugar. Ronaldo não desertou nem fugiu, viajou, deixando o saldo no lugar da vida.

Quando a dor lhe doía e a sua dor doía nos outros, ele parecia resignado e feliz. Sabia que tinha de viajar e possuia a exata noção do saldo que deixava como uma sombra viva substituindo o sombreiro morto.

E não haverá mais palavras. Estamos todos entendidos.