Um dos articulistas mais polêmicos da imprensa brasileira, Paulo Francis – que já não está entre nós – foi quem melhor definiu a personalidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ora cumpre pena de prisão em uma sala da Polícia Federal em Curitiba. Comentando uma viagem de Lula à Europa e Estados Unidos no governo do general Figueiredo, Francis alertava que o evento constituía um teste para o último governo do ciclo militar, que não deveria ser ignorado pelas autoridades brasileiras. Em 1980, então líder sindicalista no ABC paulista, Lula comandara uma greve naquela região e permaneceu preso no Dops por 31 dias, de 19 de abril a 20 de maio. No ano seguinte, fora condenado pela Justiça Militar por suposta incitação à desordem, mas recorreu e foi absolvido. “Lula não é bobo!”, apregoava Francis, prevenindo que seu périplo pelo exterior poderia manchar a imagem do Brasil aberto que Figueiredo projetara tão bem na França, e “menos bem” em Portugal.
Francis, em uma ocasião, chamara Lula de primeiro líder sindical brasileiro da era das multinacionais. “Não é outra coisa. Em vez de levar o caso dele (a prisão no governo Figueiredo) a ditaduras stalinistas onde não existe liberdade sindical de espécie alguma, exceto a admitida pelo decrépito e corrupto PC, Lula foi ao papa João Paulo Segundo, aos líderes do único PC do mundo levável a sério, o italiano, que inclui nos estatutos liberdade, “autonomia sindical” absoluta, aos socialistas, aos sociais-democratas, aos sindicalistas do mundo ocidental capitalista. De Berlinguer, o líder do PC italiano, a Felipe González, o líder socialista espanhol, a Willy Brandt, o líder eterno da social-democracia mundial, à Organização Internacional do Trabalho, aos conservadores sindicatos americanos, o processo contra Lula, o primeiro por “desobediência às leis vigentes” e “propaganda subversiva à porta de fábricas” (em suma, propaganda de greve), foi considerado uma contravenção da rotina trabalhista no mundo ocidental capitalista. Até Ronald Reagan concordaria. Reagan nunca disse uma palavra contra a liberdade sindical completa. O direito à greve é sagrado”, pontuou Paulo Francis, em artigo publicado em 1981 e inserido no seu livro “Diário da Corte”.
– Desde 1960, quando Nelson Rockfeller impôs a um (pseudo) relutante candidato à Presidência dos EUA, o republicano Richard Nixon, a eliminação no programa do partido de qualquer restrição à atividade sindical, até hoje, nem mesmo Reagan ousa dizer uma palavra contra o direito à greve. Se o governo Figueiredo embarcar nessa canoa furada, vazará, ao menos quanto ao Primeiro Mundo capitalista, que o general Figueiredo, certamente bem intencionado, quer conquistar para nos salvar da ruína econômica – salientou Paulo Francis, contando, ainda, que houvera um encontro dramático entre Lula e Lech Walesa, que era o líder sindical mais célebre do mundo. Lula era acusado de fazer política, enquanto Walesa ficava no sindicalismo puro ee simples. Walesa explicou que política na Polônia era impossível, enquanto houvesse o sistema de partido único, o PC. “Mas no Brasil, havendo um hipotético e teórico pluripartidarismo, ée claro que Walesa faria um partido e disputaria eleições. É pueril contrastar a abertura tipicamente ambígua do Brasil com o sistema stalinista polonês. É um insulto à inteligência de quem sofre essa comparação”, deblaterava Paulo Francis.
Para o colunista da “Folha de São Paulo” e da Rede Globo de Televisão, que ficou baseado em Nova Iorque durante um bom tempo, o apoio a Lula, na década de 80, era universal, “não no nicho comunista em que querem encaixá-lo, mas no mundo ocidental capitalista desenvolvido, a que o Brasil aspira participar. Se quer ser admitido, não resta alternativa exceto conceder a abertura sindical completa. O direito de greve é sagrado até para Ronald Reagan. Quem são as autoridades brasileiras para se colocarem à direita de Reagan? Não é essa, certamente, a intenção de Figueiredo. Lula está enfatizando aqui a pressão das multinacionais que atuam no Brasil para impedir a abertura sindical, que aceitam nos países de origem. Ninguém quer anarquia. O que Lula pretende é o direito à reivindicação sindical, dentro das leis que permitam e garantam o direito à greve, como arma normal do sindicalismo. O governo Figueiredo, se quiser ser admitido no “clube” do Primeiro Mundo, e ninguém menospreza a abertura brasileira até onde vai, deveria enfrentar essa realidade antes que a enfrente de maneira danosa ao Brasil”, concluía Francis, lúcido e ferino como de hábito.
Uma dissecação irretocável sobre a personalidade de Lula. Que continua atualíssima nestes anos 2019!
Fonte: Os Guedes
Créditos: Os Guedes