Quando, em 1989, uma educadora islandesa decidiu separar meninos e meninas no jardim de infância onde lecionava, despertou em muitos compatriotas a sensação de que promovia um retrocesso.
Margrét Pála Ólafsdóttir é uma educadora feminista e criadora do método Hjalli, um polêmico currículo que separa meninos e meninas durante a maior parte do dia escolar.
A ideia é desmontar preconceitos e debilidades na educação de cada gênero – para os meninos, o método reforça que devem se comunicar, falar mais sobre seus sentimentos e cuidar uns dos outros. As meninas são encorajadas a serem assertivas e a estimularem a própria resistência física.
A divisão de gêneros, segundo ela, foi motivada pela percepção de que as meninas “sempre se comportavam tão bem” e, por isso, acabavam recebendo pouca atenção dos professores. “Já os meninos em geral não iam tão bem, mas conseguiam atenção individual – uma atenção negativa”, disse Ólafsdóttir em uma palestra TED.
“(O resultado é que) elas passam pela escola achando que não são tão importantes quanto os garotos, mas (que o que vale é que) estão se comportando bem e tirando boas notas. Eles se acham importantes, mas perdem sua autoimagem educacional. Muitos param de acreditar em si mesmos. Além disso, a escola perpetua velhos modelos de estereótipos – as meninas veem como ‘se vestir e se comportar’, e os meninos acabam olhando para as meninas como um espelho reverso: ‘é como eu não devo me comportar e quais interesses eu não devo demonstrar’.”
Ela defende que, ao separar os gêneros na educação infantil, há “ganhos automáticos”: “As meninas passam a ganhar a mesma atenção (individual) que os meninos, podemos focar nas fraquezas (da criação da sociedade) de cada gênero e também a compensá-las. Também ensinamos (os dois gêneros) a interagir e a demonstrar respeito. Se não treinamos isso, esse respeito não existirá. Nas escolas mistas, isso não é treinado e não existe.”
Trinta anos depois da mudança inicial, 14 jardins da infância e três escolas primárias da Islândia passaram a aplicar o método Hjalli, que tem sido premiado internamente, ao mesmo tempo em que a separação entre meninos e meninas é bastante criticada e foi cosiderada obsoleta nos sistemas educacionais de muitos países.
Mas Ólafsdóttir defende o modelo e suas vantagens, opinando que a educação de gênero é tão importante quanto o ensino de ciência ou matemática. A seguir, veja sua entrevista com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC:
BBC – O que é o método Hjalli?
Ólafsdóttir – Quando a ideia veio à minha cabeça, 30 anos atrás, foi um choque para mim. Eu era uma jovem professora de jardim de infância, e segregar crianças pelo gênero me parecia antiquado e ridículo.
“Mas indo de escolinha a escolinha, eu via o mesmo padrão: as meninas eram mais retraídas, caladas e menos ativas que os meninos. E eles tomavam a maior parte da atenção e muitas vezes tinham problemas de disciplina.”
Então pensei, por que não separamos e vemos o que acontece? Eu não tinha nenhum modelo a seguir, mas não podia tolerar que os meninos ocupassem a maior parte do espaço nas escolinhas e as meninas fossem se retraindo. Pensei, ‘este modelo misto não funciona’. Vamos ver o que acontece se mudamos. E foi o que fiz.
BBC – Esse modelo vai contra a ideia de que não devemos tratar as crianças de modo diferente por causa do gênero delas.
Ólafsdóttir – De fato. Por isso, quando tive a ideia pela primeira vez, pensei que não era o que queria fazer. Mas não tolerava a situação. Quando comecei com o método Hjalli fui muito criticada, muita gente não entendeu e achou que era uma volta ao passado.
Comecei a me formar em teorias de gênero. Quando bebês tentam compreender o mundo ao seu redor, começam a rotular as pessoas segundo seu gênero e a separar homens de mulheres. Não sei por que fazem isso, mas é o que acontece.
E assim começam a identificar-se a si mesmos. Aos dois anos, já formaram sua identidade de gênero e entendem perfeitamente o que significa ser um menino ou uma menina Muitos pais acham que seus filhos de dois ou três anos não têm consciência de seu gênero e, por isso, acham que com meu método estarei enfatizando demais o fato de ser menino ou menina.
Mas eles (crianças) sabem perfeitamente. E aos 5 ou 6 anos já estão reproduzindo os papéis de gênero e, por isso, acham que com meu método estarei enfatizando demais o fato de ser menino ou menina. Mas eles (crianças) sabem perfeitamente. E aos 5 ou 6 anos já estão reproduzindo os papéis de gênero.
BBC – Então meninos e meninas começam a copiar estereótipos aos dois anos?
Ólafsdóttir – Sim, antes até. Aos dois anos já têm formado seu papel em um mundo cheio de estereótipos. E é isso o que passa em um ambiente misto: as meninas veem os meninos como uma antítese. Olham para eles para aprender a como não se comportar. E o mesmo acontece com eles: veem o que elas fazem e aprendem que essas atividades são de meninas, não deles.
Quando você entra em um jardim de infância normal, os meninos estão brincando de carrinho e blocos de construção, e as meninas brincam de ser mães. Elas dão as mãos às professoras e aprendem com elas, e com suas mães, que seu papel é serem responsáveis, ocupar-se de tudo e dizer aos meninos que parem se estiverem fazendo muito barulho.
BBC – Quais vantagens você acha que a separação oferece?
Ólafsdóttir – As meninas se tornam mais ativas e começam a levantar mais a voz. Quando os meninos não estão lá para ocupar esse espaço, elas assumem esse papel ativo. Isso, no currículo, chamamos de trabalho de compensação. Estimulamos as meninas a terem esse papel, levantem suas vozes, corram, gritem, subam nas árvores ou nas mesas.
BBC – É preciso estimulá-las a assumir esse papel, ou isso acontece por si só quando os meninos não estão?
Ólafsdóttir – Às vezes ocorre naturalmente, e às vezes temos que apoiá-las com esse trabalho de compensação. Algumas meninas assumem um papel mais ativo por conta própria, e outras precisam ser estimuladas.
E o mesmo com eles. Os meninos costumam receber mais atenção nas creches e colégios, embora muitas vezes essa atenção seja negativa. Mas o que aprendem com essa atenção desigual é que são importantes, mesmo que não estejam se portando bem.
Ao separá-los das meninas, vemos que eles também têm interesse nas atividades consideradas de meninas, como brincar de família, de fazer comida, de ser pai.
Eles também precisam de um trabalho de compensação, (para) interagir e (reduzir) o comportamento individualista. Ensinamos que conversem entre si e a usar mais as palavras do que os punhos. Eles precisam de ajuda para falar de seus sentimentos, cuidar uns dos outros. Elas precisam de empoderamento, de serem mais diretas e dizerem o que pensam, sem medo.
BBC – Quais atividades os meninos e as meninas fazem nas suas escolas?
Ólafsdóttir – Meninos e meninas fazem as mesmas atividades. Queremos que tenham a mesma experiência, independentemente de seu gênero. Se levo um grupo de meninas para fazer comida um dia, no dia seguinte outra professora leva os meninos. Se levo elas para jogar futebol, os meninos vão no dia seguinte, porque se estivessem ali provavelmente tirariam a bola das meninas o tempo todo.
Às vezes temos que estimular as meninas a jogar futebol, a soltar a mão da professora e arriscar levar uns tombos. Às vezes temos que estimular os meninos a falar sobre seus sentimentos. Sentamos eles em círculos, pedimos que deem as mãos, façam massagens nos pés uns dos outros. Isso é muito fácil de fazer com as meninas, mas para eles é mais difícil.
Nada passa a ser coisa de menina ou de menino. Com a segregação de gêneros, esse dualismo de masculino/feminino desaparece.
BBC – Durante anos, estudos de todas as partes do mundo têm dito que separar os gêneros não é benéfico, nem para a pesquisa acadêmica nem para a igualdade de gênero.
Ólafsdóttir – A maneira como fazemos é completamente distinta do que era feito 50 anos atrás. Simplesmente pegar os meninos e colocá-los em outro prédio não rende absolutamente nada se não houver esse trabalho de compensação. Além de separá-los, é preciso empoderá-los.
BBC – Imagino que a interação entre eles também é importante. Quando tempo meninos e meninas passam juntos e separados?
Ólafsdóttir – Nas minhas escolas, eles se reúnem uma vez por dia, para atividades em que dê no mesmo ser menino ou menina. Juntamo-nos em duplas, um menino com uma menina. (Porque) no momento em que juntamos dois ou três de cada grupo, em seguida eles se dividem (por conta própria). É o que acontece em escolas mistas, que realmente não são tão mistas assim. Nosso objetivo é ensiná-los a respeitar uns aos outros e a ficarem amigos.
BBC – A senhora diz que a separação das crianças é bom para a igualdade de gênero. Acha que também é bom na hora de estudar?
Ólafsdóttir – Nós achamos que sim. Sabemos que a partir dos dois anos começa a haver brechas de rendimento entre meninos e meninas. Elas saem na frente em habilidades linguísticas. Também se concentram por mais tempo. Sabemos que seu foco na hora de estudar é diferente. Quando os separamos, estamos dizendo a eles que aceitamos que que se desenvolvam (naturalmente) de maneira distinta e em seu próprio ritmo. Podemos aceitar essas diferenças sem com isso permitir que as construções sociais determinem quem são.
BBC – Acha que a igualdade de gênero é tão importante quanto matemática ou ciências?
Ólafsdóttir – Com certeza. A igualdade de gênero constrói o caráter. Queremos meninos e meninas que sejam fortes e independentes e ao mesmo tempo carinhosos e atenciosos.
Para mim, a igualdade de gênero significa dar a meninos e meninas a oportunidade de serem a melhor versão de si mesmos. Pense nas crianças de dois anos nos jardins de infância, aprendendo estereótipos e perdendo habilidades por não exercitá-las por conta de seu gênero.
BBC – E quanto as crianças que não se identificam com seu gênero, ou com nenhum gênero? É algo que vocês levam em consideração?
Ólafsdóttir – Nas nossas escolas, nada é de meninos ou de meninas. Os uniformes são unissex e não temos brinquedos tradicionais por serem estereotipados ao extremo. Fazemos todo o possível para eliminar o viés de gênero em todos os sentidos.
Às vezes temos meninos que querem ser meninas e vice-versa. E isso é fácil de resolver se houver apoio dos pais. Se estes estão abertos, achamos que a criança deve escolher o nome pelo qual quer ser chamada e em qual grupo quer estar.
Houve uma menina de quatro anos que decidiu que queria ser chamada com nome de menino e vestir roupa de menino. Sugerimos aos pais que ela passasse um dia com as meninas e outro com os meninos para decidir onde queria ficar.
Passou dois dias com cada grupo e no fim disse aos pais: “Faço o mesmo nos dois grupos, mas os meninos são um pouco mais barulhentos, então acho que prefiro ficar com as meninas.”
Ficou com as meninas durante dois anos, usando seu nome de menino. E as meninas sequer perguntaram algo a respeito. Se tivessem perguntado, eu lhes teria dito: “Ele nasceu menina, mas se sente menino e por isso usa um nome de menino. Mas prefere estar aqui com vocês, mais do que com os meninos”. E as meninas o teriam aceitado, simplesmente. O preconceito não vem das crianças, mas dos pais.
BBC – A Islândia já é o país mais igualitário do mundo em termos de gênero, segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial. Acha que seu modelo funciona em países como os latino-americanos, onde estereótipos de gênero estão mais enraizados?
Ólafsdóttir – Acho que o método pode funcionar em qualquer parte. Estou no momento implementando um jardim de infância na Escócia. De fato, é mais fácil fazer isso na Islândia hoje do que 30 anos atrás, agora que os islandeses estão muito mais conscientes sobre a importância da igualdade.
Mas acho que realmente pode funcionar onde quer que seja, e é que especialmente necessário em países que não estão no topo em igualdade.
Funciona bem com as crianças. O problema é que os adultos têm muito medo de mudar tudo.
Fonte: Bol
Créditos: Bol