Concluído no final de 2016, o 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas nunca foi divulgado pela Secretaria Nacional de Política de Drogas, a Senad, órgão do Ministério da Justiça responsável por encomendar a pesquisa. A hipótese mais provável, reforçada pela declaração de Osmar Terra, é que o governo federal censurou os números porque eles revelavam o oposto do que a gestão de Michel Temer queria mostrar – e que o governo Bolsonaro continua a sustentar.
Para o levantamento, a Fiocruz usou a mesma metodologia da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar, a Pnad, do IBGE, para ouvir 16.273 pessoas em 351 cidades. A amostra é o dobro do penúltimo levantamento nacional, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas em 2005. O novo levantamento mostrou, pela primeira vez, os padrões de consumo dos municípios rurais e da faixa de fronteira do país. E investigou o uso de drogas lícitas – tabaco e cigarro – e ilícitas em dez tipos ou categorias: maconha, haxixe ou skank, cocaína em pó, crack e similares, solventes, ecstasy/MDMA, ayahuasca, LSD, ketamina e heroína, além de estimulantes e anabolizantes.
Contratada por meio de um edital de 2015, durante o governo Dilma Rousseff, e concluída no final de 2016, já na gestão Michel Temer, a pesquisa custou cerca de R$ 7 milhões aos cofres públicos. Desde então, seu conteúdo jamais foi revelado – nem mesmo em pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação.
“A gente acredita que o embargo tem a ver com o fato de que a pesquisa não confirma a epidemia de crack propalada como bandeira política por certos setores conservadores da política, cujo expoente principal é Osmar Terra”, diz Cristiano Maronna, presidente da Plataforma Nacional de Política de Drogas, rede que articula organizações e pesquisadores da área. Maronna tentou duas vezes acessar o documento via Lei de Acesso à Informação, mas teve os pedidos negados. O deputado federal petista Paulo Teixeira também tentou acessar os dados no ano passado, sem sucesso.
Oficialmente, o governo diz que decidiu embargar o estudo por conta de sua metodologia. Questionado pela reportagem, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública diz que a pesquisa “não atendeu aos requisitos do edital” porque não permite “a comparação dos resultados com o primeiro e o segundo levantamentos”. Por isso, a Senad não “detém propriedade intelectual sobre os dados, não os utiliza e não os divulga”, diz o governo, em um e-mail enviado pela assessoria de imprensa.
O governo vem pressionando a Fiocruz a engavetar o estudo e chegou a acionar o Ministério Público Federal, alegando que a fundação não cumpriu os requisitos do edital. Há a expectativa, de acordo com uma fonte que conhece o processo e que pediu para não ser identificada por medo de represálias, que a Senad tente anular o edital, alegando o seu não cumprimento, e peça o reembolso dos R$ 7 milhões. A Fiocruz informou apenas, por e-mail, que o edital tem uma “cláusula que condiciona a utilização do material produzido à anuência da Senad” e que o termo de cooperação se encerrou em 2018. “Neste momento, a Fundação aguarda a anuência da Senad”, disse sua assessoria, por e-mail.
Joga pedra na pesquisa
O levantamento foi encomendado para ajudar o governo a criar políticas brasileiras em relação ao tema. A Fiocruz contratou quase 300 pesquisadores e técnicos, liderados pelo epidemiologista Francisco Inácio Bastos, pós-doutor em saúde pública e autor de mais de 290 artigos. Os resultados foram compilados em um relatório de 520 páginas – inédito até a publicação desta reportagem.
Consultei quatro especialistas em política de drogas para entender os achados do estudo. Chama a atenção, por exemplo, a porcentagem de uso de drogas, muito menor do que alardeia o governo. Usando como exemplo o caso de um hospital no Rio Grande do Sul, Osmar Terra disse que, em 2002, 80% das internações de urgência eram devidas ao uso de álcool; já em 2007, 80% eram causadas pelo crack. “Houve uma subida muito rápida da questão do crack”, ele sentenciou. Mas não é o que diz a pesquisa.“O estudo epidemiológico da Fiocruz é robusto e não mostra epidemia”, diz Luiz Fernando Tófoli, professor da Unicamp que há 20 anos trabalha com saúde mental e uso de drogas.
Mais do que o crack, o problema que salta aos olhos é o uso de álcool. Segundo a pesquisa, 66,4% já fizeram uso de álcool na vida, 43,1% no último ano e 30,1% nos últimos 30 dias – número que vem caindo. Há outros dados preocupantes, como a facilidade para encontrar bebidas alcoólicas e a baixa percepção dos seus riscos. Ao relacionar os tipos de violência consequentes do abuso do álcool, o estudo lista ocorrências variadas, como tentativa de estrangulamento e ameaça com arma de fogo. “Nossa política deveria ser estruturada a partir disso”, diz Maronna.
O governo afirma que não é possível comparar a pesquisa com a anterior, de 2005, que abrangeu as 108 maiores cidades do país. A atual pesquisa se estendeu a 351 municípios, mas manteve o recorte das 108 em várias tabelas comparativas ao longo do relatório. Neste estrato, é possível identificar, por exemplo, queda no consumo recente de tabaco — de 18,4%, em 2005, para 14,2%, em 2015 — e de álcool — de 38,3% para 33%.
Também é possível comparar os achados com outras duas pesquisas nacionais independentes, a Lenad 1 e 2, feitas pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e outras Drogas, e com a pesquisa nacional sobre crack, feita em 2014 pela Fiocruz. Os números são coerentes: a Lenad de 2012 mostra que 6,8% dos brasileiros consumiram maconha uma vez na vida; no levantamento atual, são 7,7%. Os que usaram crack uma vez na vida eram 1,3% e hoje são 0,9%.
“Não vejo nada surpreendente. Exceto no caso do álcool e do solvente, que tiveram queda, os outros são números esperados e revelam que o consumo, em geral, se manteve estável”, diz Maurício Fiore, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, outro pesquisador que analisou a pesquisa a pedido da reportagem. Maronna também não vê revelações “assustadoras”. Segundo ele, “quase 10% ter usado droga ilícita uma vez na vida é um número razoável. Comparado a outros países, não revelam uma situação excepcional ou alarmante”, diz.
Os pesquisadores argumentam que, embora os achados da pesquisa possam ser questionados – e é comum que a comunidade científica faça isso – nada justifica o engavetamento. A Senad poderia ter tornado as informações públicas, mas com ressalvas. “Fica a impressão de que há algum interesse por trás. Se houve erro, a melhor maneira de identificar é debater. É assim que se faz ciência: publica-se e submete-se ao escrutínio dos especialistas”, diz Tófoli.
Uma justificativa para os R$ 153 milhões
Com a troca de governo em janeiro, o embargo da pesquisa, que se arrasta desde 2016, ganhou novos contornos. No dia 19 de março, Osmar Terra e a ministra Damares Alves anunciaram a assinatura de contratos com 216 novas comunidades terapêuticas para tratamento de dependentes químicos, ao custo de R$ 153,7 milhões por ano para 10.883 vagas.
“Elas são decisivas para enfrentar a epidemia das drogas que destrói a nossa juventude, que causa a violência que o país vive e que está se propagando em uma escala gigantesca”, disse Terra na cerimônia. Damares Alves completou: “neste ato, o estado laico reconhece a importância das comunidades religiosas. É o retrato de um novo Brasil”.
O Brasil possui quase 2 mil comunidades terapêuticas, em sua maioria ligadas a igrejas evangélicas e católicas, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Nelas, em geral, o tratamento se baseia em isolamento, trabalho braçal e atividades religiosas. Muitas já foram denunciadas por maus tratos, cárcere privado e outros crimes – caso da Centradeq-Credeq, em Minas Gerais, que o Intercept visitou no final do ano passado. “Essas instituições são a trincheira de resistência à reforma psiquiátrica, violando direitos e ignorando a redução de danos, que, em combinação com a abstinência, apresenta bons resultados”, diz Maronna.
Osmar Terra é contra qualquer política de redução de danos. Ele acredita que a melhor abordagem é a abstinência e a internação compulsória – foi autor, inclusive, de um projeto de lei para obrigar os dependentes a serem internados. Defensor do modelo de clínicas religiosas, o ministro vê nas comunidades uma tábua de salvação para resolver, de uma vez por todas, “a epidemia de drogas no país”.
Seu esforço tem resultados. Aos poucos, o modelo de comunidade terapêutica tem se tornado preferência no governo, em detrimento dos Centros de Atendimento Psicossocial, os Caps, do SUS. Até 2017, o país custeava cerca de 2 mil vagas em comunidades. No ano seguinte, com Terra no comando, o número subiu para 6,6 mil. Em 2019, chegam a 10,8 mil leitos, um aumento de quase 50% em um ano.
A pergunta do milhão, ou melhor, dos R$ 153 milhões, suscitada por especialistas em políticas de drogas, é: por que, afinal, tal política pública foi implementada sem levar em conta o que dizem os números da pesquisa da Fiocruz, capaz de balizar decisões sobre quando, quanto, onde e de que forma investir para tratar dependentes? Mais uma vez, a resposta talvez seja: porque os números não dizem o que o governo queria ouvir.
Fonte: The Intercept
Créditos: Ines Garçoni