Após reunião com seus principais assessores, Jair Bolsonaro teria afirmado, nesta segunda (25), que era hora de pacificar a relação entre o Executivo e o Legislativo em nome da Reforma da Previdência. Logo depois, voltou à carga contra Rodrigo Maia, publicando, em sua conta no Twitter, a opinião de um jornalista que criticou o presidente da Câmara dos Deputados e defendeu seu filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio e responsável pelas redes sociais do pai – não necessariamente nessa ordem.
Depois o próprio Carlos, sem citá-lo diretamente, criticou Maia, que havia dito que Bolsonaro deveria gastar mais tempo com a articulação da Reforma da Previdência e menos com o Twitter. “As pessoas que querem Bolsonaro longe das redes sociais sabem que é isso que o conecta com o povo, já que não tem mídia a seu favor. Foi isso que garantiu sua eleição, inclusive. Em outras palavras, o querem fraco e sem apoio popular pois assim conseguiriam chantageá-lo.”
A despeito da possibilidade de Carlos ter publicado ele mesmo os dois posts, pois tem acesso à conta do pai, claramente foram feitos com a anuência do presidente da República, mostrando que a reunião com os assessores não foi bem absorvida por ele.
E, em meio ao ninguém é de ninguém no salão, até o líder do partido de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Delegado Waldir (PSL-GO), reclamou da falta de empenho dele pela reforma, da baixa qualidade da articulação do governo até aqui e dos ataques nas redes sociais puxadas por Carlos e pela nuvem de gafanhotos bolsonaristas.
Bolsonaro deveria parar de agir como se comandasse o “Ministério da Verdade” – apresentado no romance “1984”, de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que fosse contrária ao próprio governo. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens continua ligada e é usada para atacar violentamente a imprensa, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e qualquer um que critique ao invés de dizer amém.
Não admira, portanto, que o porta-voz da Presidência da República tenha comunicado, também nesta segunda, que Bolsonaro “determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação ao 31 de março”, quando o golpe de 1964 completa 55 anos. Até porque, segundo o general Rêgo Barros, “o presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli – que, em outubro do ano passado, disse que prefere chamar a data de “movimento de 1964” – tem nobre companhia.
“Ele considera que a sociedade reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”, afirmou. Essa não é uma visão majoritária, mas agora é defendida pelo Palácio do Planalto.
Como escreveu o criador do Big Brother (o do livro “1984”, não o reality): “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”.
Reescrever o passado pela tinta do presente inclui ordenar o retorno da celebração em batalhões e quartéis da deposição de um presidente e da instituição de um regime que matou, torturou, estuprou, cassou, roubou (e muito), perseguiu e desapareceu com pessoas, negando a democracia ao país por 21 anos. Os generais da reserva, da equipe de assessores próximos supracitada, teria recomendado que essas comemorações fossem discretas. Mas quem manda é o capitão, não os generais.
Frei Tito, encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar no Brasil, deveria participar desses festejos, mas infelizmente não será convidado. Afinal, o testemunho de sua tortura à Justiça Militar, completa 50 anos: “Sentaram-me na ‘cadeira de dragão’ [com chapas metálicas e fios], descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau de arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei” .
Garantir que o “golpe de 1964” fosse assim chamado demandou sangue, suor e a vida de muita gente. Indo contra o poder econômico, o poder político e o poder midiático que, em determinado momento, apoiaram o regime. Mas foi um processo vitorioso. Prova disso é que a própria Globo, que deu anuência à tomada de poder pelos militares, fez seu mea culpa com um famoso editorial intitulado “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. Nem revolução, nem movimento. Golpe.
O “Ministério da Verdade”, de Bolsonaro, inclui castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, com intervenções na gestão da educação pública. Ordenar a leitura de slogan de campanha eleitoral nas escolas, demandando que crianças fossem gravadas enquanto cantassem o hino nacional e os vídeos enviados para Brasília – tudo sem autorização dos pais – foi a parte pastelão de um processo maior, em curso. Inclui também apontar para as liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988 e dizer que a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação, e que “os direitos trabalhistas” produzem crise econômica.
É certo que Bolsonaro conseguiria nos levar de volta a 1964 – ou, pior, 1968. Mas ele consegue construir um 2019 que garanta dignidade à população no futuro? Daí tenho três questões para refletir.
Primeira: uma pessoa cunhada para a guerra é capaz de negociar pacificamente e resolver conflitos, como tratei no post deste domingo? Isso não tem a ver com a formação militar do capitão reformado, uma vez que os generais da reserva que fazem parte da sua equipe demonstram ser muito, mas muito mais moderados e afeitos ao diálogo que ele. Um político eleito com uma narrativa antissistêmica, contra tudo o que está aí, conseguiria articular com o políticos de forma a não comprometer sua imagem? A questão é que, tendo passado três décadas chamando para o conflito, a ponto de dizer que uma deputada “não merecia ser estuprada”, seria ele capaz de agir de forma republicana?
Segunda: ele propositadamente está deixando sua equipe entrar em combustão ou não faz ideia de como equilibrar os diferentes grupos que lhe dão suporte? O escritor e astrólogo Olavo de Carvalho, guru intelectual de Bolsonaro e família, ataca com insultos os ministros de origem militar e, principalmente, o vice, Hamilton Mourão, como parte da disputa interna de poder. O presidente, diante disso, permanece em silêncio e até o celebra em jantar – elevando as suspeitas de que muito do que o escritor diz representa aquilo que o presidente e a ala ideológica de sua equipe creem, mas não podem falar diretamente.
(É preciso reconhecer o sangue frio do pessoal que usava farda. Mesmo sob fogo-amigo, eles têm servido como aquelas rodinhas de bicicleta, usadas por quem não aprendeu a andar sozinho. A bicicleta, no caso, é a Presidência. A resposta mais dura, até agora, veio do ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, que chamou Olavo de Carvalho de “desequilibrado”, em matéria de Thais Bilenky, na Folha de S.Paulo. Um gentleman em comparação à escatologia do guru da Virgínia.
Terceira: ele e seus aliados ideológicos realmente acreditam que a população acredita que eles acreditam no que estão falando? Porque achar que o governo contará com “pressão popular” para aprovar a Reforma da Previdência, do jeito que foi enviada ao Congresso Nacional, é mais hilário do que a piada do papagaio que foi crucificado por passar muito trote. Na hora em que a população mais pobre entender a tungada que vai tomar com mudanças, como as que postergam o acesso ao salário mínimo do benefício para idosos em situação de miséria, dificultam a aposentadoria de trabalhadores rurais e endurecem pensões para viúvas e órfãos pobres, vai ter protesto nas ruas – mas contra o governo.
Neste momento, a maior chance de aprovação da sua reforma passaria por uma interlocução com o Congresso Nacional, convencendo, cedendo, contra-argumentando (com fatos, não com fakes), negociando, articulando, dividindo poder, governando junto. O que, como já expliquei aqui várias vezes, é bem diferente do velho tomaladacá e do comércio de cargos e emendas. Ao invés disso, deixa o filho e as redes livres para abater adversários – milícias digitais que agem como aquelas homenageadas e defendidas repetidas vezes pela família.
Em outubro do ano passado, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, Bolsonaro afirmou que o objetivo de seu governo seria fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”. Taí o problema. O foco é para trás, não para frente.
O presidente está no volante, mas parece que só sabe engatar a ré.
Fonte: UOL
Créditos: UOL