O que o presidente Jair Bolsonaro tem a ver com a tragédia na escola de Suzano? Tudo! É claro que ele não pode ser responsabilizado pelo ato tresloucado de duas pessoas. Não se trata de responsabilização penal, mas de responsabilidade política. E, nesse caso, seu discurso está na raiz do problema. Não fosse assim, ele teria se manifestado de pronto. Mas com que cara? O que se tem, até agora, é só uma nota fria, que transforma os mortos em dados de burocracia. Fazer o quê? Pouco antes, o presidente havia afirmado, numa conversa com um grupo de jornalistas, que dorme com uma arma ao lado da cama, embora seja uma das pessoas mais bem protegidas do mundo.
Manifestou-se assim o Palácio:
“Mais uma vez, nosso país é abalado por uma grande tragédia. O Governo Federal manifesta seu profundo pesar com os fatos ocorridos na cidade de Suzano, em São Paulo, apresentando suas condolências e sinceros sentimentos às famílias das vítimas de tão desumana ação.
Ao Estado de São Paulo, colocamos nosso total apoio para auxiliar na apuração dos fatos”.
Sobre um sujeito que urina em outro, proselitismo vulgar; sobre o massacre numa escola, o silêncio. O tuíte do xixi tinha 177 toques sem espaço. A parte da nota planaltina que se refere aos mortos e seus familiares, 170. Desconto, nesse caso, o cabeçalho genérico e a oferta feita a São Paulo, o ente federativo, que não levou tiro. Um presidente é uma referência política, moral e cultural. O nosso poderia simbolizar, a exemplo de muitos mundo afora, a cultura da não-violência, da não-retaliação, da convivência entre divergentes e opostos. Mas ele faz justamente o contrário. Alguns massacram ex-colegas de escola. Outros massacram jornalistas com base em informações falsas. Nos dois casos, a perspectiva da eliminação do “outro” que me atrapalha, do “outro” que não segue a minha cartilha, do “outro” que quer o meu mal.
Aos jornalistas, o presidente disse que pretende também flexibilizar o porte de armas. E aí, sim, mora um grande perigo. Aquele decreto ampliando a posse, embora já irresponsável, não tem grande relevância na violência cotidiana. Já o caso da generalização da posse pode ter efeito explosivo. Estudos às pencas indicam que parte considerável dos eventos com armas tem motivação fútil. Segundo o Atlas da Violência, foram 62.517 homicídios no país em 2016; 71,7% praticados por intermédio de armas de fogo, como aquela que Bolsonaro disse, na conversa com os jornalistas, repousar em seu criado-mudo (espero que não seja debaixo do travesseiro) enquanto dorme.
Por que alguém rigidamente protegido pela Polícia Federal e por serviços especiais das Forças Armadas precisa dormir praticamente agarrado a uma arma? Desconfiança de que sua segurança tenha sido infiltrada por pessoas interessadas na sua morte? Nesse caso convém contratar alguém para provar a comida, o cafezinho, os produtos de higiene pessoal… Nunca se sabe quando alguém pode meter Antrax no sabonete, não é mesmo? É evidente que não se sente inseguro. Ele estava apenas expressando, mais uma vez, a sua devoção às armas, o que vale como um convite e uma recomendação para ao restante dos brasileiros. Se ele, protegido por uma multidão armada até os dentes, precisa de um revólver para se sentir seguro, o que deveríamos fazer nós? O que deveriam fazer os milhões de brasileiros que moram em favelas, em barracos que nem de alvenaria são, sujeitos a balas perdidas?
Imaginem esses aglomerados urbanos armados até os dentes, com balas a atravessar paredes sem atritos, encontrando seu destino final na carne humana. Sim, é verdade!, eu estou falando de uma gente mais escura, não é?, que mora nesses locais. Segundo o Atlas da violência, 71,5% das vítimas de homicídio em 2016 eram negras ou pardas. A carne preta continua a ser a mais barata do mercado, como na música.
Suas afirmações infelizes foram feitas pouco antes da tragédia de Suzano, o que demonstra que os fatos começam a perseguir as bobagens de Bolsonaro. Não há nada de místico nisso. É que tragédias, com efeito, acontecem. E elas perseguem com especial afinco aqueles que mais dizem tolices. Governistas outros disseram coisas odiosas, sim. Ainda voltarei ao assunto. Precisamos de lideranças políticas que desarmem pessoas e espíritos. Bolsonaro faz o contrário. E, como se vê, tem mais a dizer sobre xixi do que sobre pessoas que morrem à bala. Ah, sim: a julgar pelo João 8:32 que o presidente vive citando, imaginei que ele dormisse ao lado da Bíblia. Mas há uma hierarquia, pelo visto. Primeiro vem a bala.
Nem sempre a verdade liberta, não é mesmo?
Fonte: Uol
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