As mulheres brasileiras vivem em um mundo ambíguo. De um lado, conquistam mais espaço na política, aprovam leis para se proteger e reivindicam estar onde têm direito de estar. Ao mesmo tempo, são aprisionadas em relacionamentos abusivos e alvo dos mais variados e cruéis tipos de violência doméstica, sexual e assédio.
Neste Dia Internacional da Mulher, a Universa completa um ano de vida. De março de 2018 até agora, vimos o Brasil tornar-se mais consciente em relação à vida de mais de 100 milhões de mulheres. Foram 12 meses de histórias de quem desafiou barreiras milenares de desigualdade de gênero, com conquistas tão tímidas quanto inéditas na história. Elas, aos poucos, ocupam espaços e lutam, mostrando sua força, enquanto vivem diariamente um cotidiano cruel.
Falar da violência salva vidas
Olhar para trás, nesse caso, significa lembrar de casos como a morte da advogada Tatiane Spitzner. Ela foi espancada pelo marido em julho de 2018, despencou do quarto andar do prédio onde morava, no Paraná. Um caso emblemático dentre tantos outros de feminicídio.
Relembrar histórias revoltantes como essa faz com que mais gente perceba a importância da denúncia e de como a violência predomina sobre a vida das mulheres.
Nos últimos 12 meses, algumas delas decidiram falar sobre os estupros cometidos durante décadas por João de Deus. Elas deram força para outras centenas. A coragem para expor e a quantidade impressionante de crimes dos quais ele é suspeito fez com que o caso se tornasse um dos maiores de estupro do país. Hoje, o médium está na cadeia há dois meses e aguarda julgamento.
Os assassinos da transgênero Dandara dos Santos — espancada no meio da rua à luz do dia, no Ceará — também foram condenados pelo crime. O que ainda não significa que estamos perto de acabar com crimes de ódio: o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo dados da ONG Transgender Europe, com sede na Suécia.
2018 também foi um ano de impunidade: os assassinos da vereadora carioca Marielle Santos, mulher negra, bissexual e da periferia fluminense continuam no anonimato. Mesmo depois de ser fuzilada em uma avenida do Rio, seu legado é questionado por políticos de posição contrária. Falar de sua morte estimula sentimentos de injustiça e também força.
Violência que sempre existiu. Violência que aumenta
O número de mulheres mortas por parceiros em 2018 ainda não foi contabilizado. Mas dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que analisa registros feitos em 2017, mostram que 4.539 homicídios intencionais de mulheres aconteceram naquele ano. Já os feminicídios atingiram a marca de 1.133 vítimas fatais da violência doméstica ou dos crimes de ódio. Comparados a 2016, a quantidade de vítimas cresceu 6,1% em 2017.
Está debaixo de nosso nariz
Já em 2018, a mesma instituição descobriu que 27,4% das mulheres com mais de 16 anos no país sofreram alguma violência ou agressão. Isso quer dizer que a cada quatro mulheres que você conhece, uma apanhou.
E fica ainda mais impressionante se levarmos em conta que dessas agressões, cerca de 80% das agressões foram feitas por conhecidos, cônjuges, ex-companheiros ou vizinhos — estão embaixo do nosso nariz. A pesquisa foi feita em parceria com o Datafolha e ainda apurou que, por medo, menos da metade dessas mulheres buscou por ajuda.
“Hoje, quando acontece uma violência, todos ficam indignados e exigem providências. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Com frequência há o julgamento moral e desqualificação das mulheres, o que é inadmissível. A culpa é sempre do agressor”, explica Valéria Scarance, promotora do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Uma vitória: mais segurança no transporte público
A situação é conhecida por quase todas as mulheres que pegam transportes públicos no país: roçadas propositais, passadas de mão e até importunações como ejaculações dentro de trens e ônibus.
Em 2017, o país ficou abalado com a história de uma mulher que foi molestada por ejaculação em um ônibus na Av. Paulista, em São Paulo.
O autor da violência foi preso em flagrante e solto em seguida por um juiz que alegou que não houve “constrangimento, violência ou ameaça” e que a vítima ficou “nervosa”. Dias depois, o mesmo criminoso foi preso novamente por repetir o ato com outra passageira, em outro ônibus da cidade.
Mas por que você não reclamava antes?
O caso acendeu o debate: por que mulheres têm sido molestadas no transporte público por décadas e permanecem caladas? Pois não estão mais — e agora têm respaldo legal.
Em 2018, essa realidade resultou na Lei de Importunação Sexual, aprovada no ano passado. A lei dá penas mais severas a ataques sexuais no transporte público e na internet. Até então, um homem poderia realmente ejacular contra o rosto de uma mulher no transporte coletivo e sair impune.
Para se ter ideia da importância da lei, em outubro de 2018, um mês após sua implantação, a CPTM, Companhia de Transporte Coletivo de São Paulo, havia registrado 25 casos de importunação. É quase um por dia!
“Na verdade, sempre houve muita violência em nosso país, mas as mulheres mantinham silêncio ou não reconheciam algumas formas de violência como assédio. Agora, graças às novas leis e campanhas de conscientização, as vítimas reconhecem a violência e têm mais coragem para reagir”, explica a promotora Valéria.
Estupro: mais coragem, mais denúncias, um pouco de justiça
No ano passado, veio à tona o maior caso de violência sexual do país. O médium João de Deus, que atuava em Abadiânia (GO) e era reconhecido mundialmente pelo seu poder de cura das mais diversas doenças, foi acusado de ter estuprado centenas de fiéis. Segundo o Ministério Público, as vítimas eram crianças, adolescentes ou adultos — pessoas enfermas que buscavam algum conforto para as próprias dores e confiaram no médium. Foram mais de 300 relatos de abusos espalhados pelos 45 anos de atuação de João, que permanece preso.
Foi também em 2018 que a ministra responsável pelo ministério das mulheres, Damares Alves, revelou ter sido vítima de violência sexual na juventude. Ela contou do crime que sofreu em detalhes à Universa. Um relato como esse ressalta a importância de falar sobre o ocorrido para proteger futuras vítimas.
Expor a realidade ajuda mulheres
O último estudo nacional, do Fórum de Segurança Pública, mostra que 60 mil mulheres foram vítimas de estupro em 2017. O crescimento foi de 10,1% em relação a 2016. O aumento mostra que também cada vez mais mulheres e autoridades estão rompendo o medo para expor essa realidade. No estado de São Paulo, por exemplo, foi registrado recorde de denúncias. Foram 11.950 casos em 2018, segundo a Secretaria de Segurança Pública, de estupro e estupro de vulnerável.
Na contramão, tramita na Câmara e no Senado propostas para proibir que vítimas de estupro façam abortos dentro da lei — ou em qualquer ocasião, mesmo ao sofrerem estupro.
“Essa contradição está relacionada ao fato de que, apesar do crescimento da bancada feminina, houve também um aumento da bancada conservadora. É importante dizer que nem todas as mulheres eleitas são feministas. Algumas, inclusive, defendem pautas que podem representar retrocessos no que diz respeito aos direitos das mulheres, como a restrição do acesso ao aborto em casos em que ele já é legalizado”, explica a pesquisadora Beatriz Rodrigues Sanchez, do Grupo de Estudos de Gênero e Política da USP.
Perde de um lado, ganha nas urnas
Se de um lado a morte da vereadora Marielle Franco foi uma perda emblemática para causas femininas, da população negra e LGBTI, seu assassinato inflamou a procura de outras mulheres como representantes políticas. “O brutal assassinato também fez com que mulheres, principalmente mulheres negras, quisessem se candidatar para levar o seu legado adiante”, analisa a pesquisadora.
Foram 77 deputadas federais eleitas, 26 a mais do que em 2014. Aumentou também o número de deputadas negras — de 10 para 13 — e de brancas — 41 para 63 –, e Roraima elegeu a primeira mulher indígena ao Congresso Nacional: Joenia Wapichana (Rede).
Nas assembleias legislativas, o fenômeno se repetiu: temos 37% a mais de mulheres deputadas estaduais e distritais… Mas ainda são 15% do total de deputados estaduais eleitos no país.
Do lado de cá das urnas, a rejeição do voto das mulheres influenciou toda a campanha presidencial de 2018. Na ocasião, Márcia Cavallari, CEO do instituto de pesquisa Ibope, afirmou que as mulheres tiveram um comportamento inédito na história da nossa democracia. Antes, os votos delas assemelhavam-se ao dos homens. À época, porém, ganhou comportamento próprio.
Não à toa, no ano passado a campanha #EleNão se posicionou contra declarações consideradas machistas do agora presidente Jair Bolsonaro. Centenas de milhares de mulheres saíram em protestos de rua em todo o país.
“Isso significa que as mulheres têm consciência de seus interesses e, consequentemente, se tivéssemos mais mulheres na política seria possível promover políticas que representassem melhor as perspectivas da população feminina”, diz a pesquisadora.
Apesar disso, estados como Mato Grosso do Sul reduziu de três para zero o número de deputadas estaduais eleitas em 2018.
Mortes que simbolizam o ódio: muito a caminhar
Os homens acusados de assassinar brutalmente a transexual Dandara dos Santos, no Ceará, foram presos em abril de 2018. Espancada e morta em meio à rua, sua vida e morte simboliza as centenas de assassinatos contra transexuais no Brasil. As cenas, fortes, revelam chutes à luz do dia, simbologia agressiva que demonstra que há quem acredite que pessoa trans não tem o direito de existir em nosso país.
Um relatório realizado pelo Grupo Gay da Bahia, que usa como base casos de repercussão na imprensa, constatou o homicídio de 81 travestis e 72 mulheres trans em 2018. O grupo calcula que a chance de uma pessoa trans ser morta é 17 vezes maior do que a de um homem gay.
Vitórias tímidas
Ao mesmo tempo, a população trans conquistou o direito de ter seu nome reconhecido da maneira que quisesse. O Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que mulheres trans não devem ser obrigadas a passarem por cirurgias de redesignação de sexo para ter o nome social reconhecido. Uma vitória que parece pequena, mas que muda a realidade de milhares de pessoas no país.
“Há, por um lado, conquistas como uso do nome social, respeito ao nome civil e avanços na área da saúde e na educação; por outro uma sociedade transfóbica e completamente ignorante em respeito a essa população”, diz Keila Simpson, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
“Ser mulher trans e ser travesti é viver em um mundo da discriminação, do preconceito e do isolamento. A despeito de pequenos avanços que essa população tenha conquistado, ainda há uma contradição muito grande em um país democrático e grande como o Brasil”.
Fonte: Universa
Créditos: Universa