Esta é uma das épocas do ano que mais gosto de ir ao cinema. A maioria dos indicados ao Oscar estreia. Parto, então, numa peregrinação quase religiosa pelas salas de cinema com a minha inseparável companheira Anne Medeiros. Como bons diletantes, discutimos cada filme, fazemos projeções e “apostas” acompanhados sempre de um bom café.
Na semana passada assistimos dois filmes: A Favorita, do diretor grego Yorgos Lanthimos, e Green Book: O Guia, de Peter Farrelly – o mesmo de Quem Vai Ficar com Mary? e Débi e Loyd, que estranhamente não foi indicado ao prêmio de melhor diretor deste ano.
Green Book (com 5 indicações: filme, ator principal, ator coadjuvante, roteiro e edição) é uma comédia dramática inspirada em fatos reais. O roteiro de Nick Vallelonga é um dos pontos altos da obra. Bem escrito, coeso, com diálogos inteligentes e narrativa com pouquíssimos “furos”. A história se passa nos Estados Unidos durante os anos 1970. Um país marcado pela segregação racial, profundamente injusto, mas que já sentia os efeitos da luta por direitos civis que figuras como Rosa Parks, Malcom-X e Martin Luther King Jr. ajudaram a criar na década anterior.
Nick Vallelonga se baseou na vida do seu pai Frank Vallelonga para criar o roteiro, o que lhe renderia algumas críticas por supostamente edulcorar a figura dele. O filme conta a história da viagem que ele fez como motorista do lendário pianista de jazz Don Shirley. A personagem de Frank Vallelonga – para os mais íntimos “Tony Lip” – é um imigrante italiano malandro, racista, fanfarrão, “meio ogro” e pai de família apaixonado pela esposa que trabalhava como segurança na Boate Copacabana em Nova York.
Tony Lip conheceu Don Shirley – que morava num apartamento luxuoso em cima do Carnegie Hall – quando estava à procura de emprego, depois que a boate na qual trabalhava encerrou as atividades por causa de uma reforma. A proposta de trabalho oferecida pelo músico consistia em dirigir seu carro durante uma turnê pelo sul dos Estados Unidos, garantindo que tudo ocorresse sem grandes transtornos e que nenhuma apresentação fosse cancelada.
As personagens têm visões de mundo, capital cultural e formação educacional bastante distintas. Don Shirley, além de gênio da música, é um homem de grande erudição, elegância, fineza, ética, sensibilidade, polidez e notoriedade acadêmica. Já Tony Lip, por sua vez, é um “brucutu” que embarcou nessa viagem apenas pelo gordo salário, único motivo que faria alguém como ele trabalhar para um homem negro e engolir o próprio racismo.
As experiências durante a viagem, porém, acabam produzindo uma transformação espiritual na forma como ambos percebem e sentem o mundo. Não é à toa que a viagem é um dos temas mais recorrentes nas histórias mitológicas. Como dizia o Jornalista Bill Moyers, seguindo os ensinamentos do antropólogo Joseph Campbell, “a mitologia é um mapa interior da experiência, traçado por alguém que empreendeu a viagem.” Ela capta vivências humanas e as estrutura em linguagem poética, metafórica e ficcional.
A viagem é um dos principais elementos daquilo que Campbell atribuía o nome de monomito ou a jornada do herói. Trata-se de um padrão estrutural recorrente nas narrativas mitológicas que também é muitíssimo comum no cinema, na literatura, em seriados e novelas. Um tema universal, ou melhor, um jeito universal de se contar histórias. A obra O Herói de Mil Faces de Campbell se tornaria, assim, leitura obrigatória entre diretores e roteiristas em todo o mundo, fazendo enorme sucesso em Hollywood.
A jornada do herói funciona basicamente como um ciclo que começa no mundo normal, passa por lugares desconhecidos e cheios de perigos, até retornar ao ponto inicial. Mudando internamente o herói. Este costuma receber um chamado misterioso para um desafio que muitas vezes rejeita – sendo mesmo assim levado a enfrentá-lo, seja por meio de ardil ou reviravolta inesperada. É comum a existência de alguém mais sábio para auxiliar o herói na aventura, como Obi-wan Kenobi fez com Luke Skywalker e o Mestre dos Magos com os jovens da Caverna do Dragão.
Durante a jornada o herói encontra monstros que precisa derrotar. Literais como em Harry Potter e nos Doze Trabalhos de Hércules ou diretamente ligados à nossa vida cotidiana e à experiência universal de estarmos vivos. Em Green Book, os monstros são sociais e afetivos e atendem pelo nome de solidão, racismo, pobreza e violência. A viagem de Don Shirley e Tony Lip não é uma simples turnê musical.
Por um lado, uma arriscada aventura num país desigual, cruel e extremamente perigoso para certas pessoas. Por outro, um caminho sem volta que revisita traumas, reelabora sentimentos e diferenças que vão aos poucos se diluindo por meio de trocas humanas que fazem nascer uma nova sensibilidade.
A jornada de Don Shirley e Tony Lip é, antes de qualquer coisa, uma jornada interior. Ela tem como fim o engrandecimento pessoal dos heróis.
Fonte: Estevam Dedalus
Créditos: Estevam Dedalus