Tem uma questão que me atormenta desde a primeira vez que assisti Laranja Mecânica, que desejo compartilhar com vocês.
Alex, a personagem principal, é um psicopata, sádico, líder de uma gangue juvenil, que se apraz em violentar pessoas num futuro distópico. O que nos leva a crer, apressadamente, que seja o tipo de gente que causa repulsa instantânea – um ser incapaz de provocar a menor afeição. Mas é exatamente o contrário. Estamos falando de um dos vilões mais icônicos e carismáticos da história do cinema e que se tornaria símbolo da cultura pop. Seja por sua complexidade psicológica, pela genial interpretação de Malcolm Mcdowell ou a extraordinária direção de Stanley Kubrick.
Definitivamente não se trata de qualquer vilão. Alex encarna o mal demoníaco ou radical, nos termos usados pela socióloga húngara Agnes Heller para se referir à malignidade intrínseca a certas personagens. Uma das coisas mais intrigantes do mal demoníaco é que ele produz fascinação. É atraente e sedutor. Daí a importância do Diabo na cultura ocidental.
O mesmo não costuma acontecer com outros tipos de vilões, a não ser parcialmente. Agnes Heller fala de um tipo de mal que pode ser descrito como a ausência de bem. Nele se encaixam personagens arrivistas que colocam seus interesses em primeiro lugar e não perdem tempo em passar os outros para trás; mas que assim agem mais por um utilitarismo egoísta do que qualquer outra coisa. Como aqueles jovens dos romances de Jane Austen que seduzem mulheres na intenção de se apoderar de seus dotes. Usam as pessoas em benefício próprio. São mesquinhos. Eventualmente podem sentir remorso ou culpa pelos seus atos e por acidente, quem sabe, fazer o bem.
Com Alex é diferente. A violência é, antes de tudo, fonte de prazer e expressão da beleza. A estetização da violência, creio, é um dos aspectos fundamentais de Laranja Mecânica. Em primeiro lugar, pela forma como Kubrick constrói as cenas de ultraviolência explorando a plasticidade dos movimentos das personagens, a ambientação, a trilha sonora, o humor macabro e os planos de câmera. É exatamente isso que faz com que os espectadores se deixem seduzir pelo mal.
O segundo aspecto dessa estetização diz respeito à própria obra de arte, enquanto forma de expressão de sentimentos. Beethoven foi um grande especialista em transformar a violência em arte. Não é à toa que Alex tinha uma paixão avassaladora pelo compositor. Depois de ter sido preso por assassinato, o rapaz se candidata à cobaia de uma nova técnica científica (Método Ludovico) que prometia transformá-lo numa pessoa boa e cidadão livre. Tudo não passava de uma espécie de “condicionamento pavloviano” financiado pelo governo.
Durante o processo Alex é submetido a cenas de ultraviolência, envolvendo estupros, espancamentos e tortura. Ao mesmo tempo em que recebia doses de uma droga que lhe causava mal-estar físico. A técnica consistia basicamente em produzir náuseas e dores todas as vezes que sentisse vontade de cometer violência, paralisando-o. A vontade de sair da prisão, todavia, levou Alex a se submeter ao tratamento. Em troca da liberdade deveria abrir mão do prazer sádico da violência concreta. O que fez, espantosamente, sem demonstrar nenhuma resistência.
A questão que me atormenta até hoje, no entanto, é a seguinte: em certo momento do processo as imagens de ultraviolência passaram a ser associadas à Nona Sinfonia de Beethoven. Esta é a única vez em que pede para que os cientistas parem. Ele diz ser pecado associar Beethoven a sentimentos tão negativos. Sem dúvida, uma profanação.
Por que, afinal, Alex deixaria de lado o prazer sádico em troca da saída da prisão, mas não aceitaria renunciar o prazer provocado pela música de Beethoven? Seria esta uma forma mais elevada da violência?
Fonte: Estevam Dedalus
Créditos: Estevam Dedalus