O diretor inglês Steve McQueen, que ganhou o Oscar por “12 Anos de Escravidão” (2013), sobre um homem negro livre que foi sequestrado e transformado em escravo, tem sua opinião sobre o Brasil: “É um dos lugares mais racistas em que já estive”.
O cineasta de 49 anos, que dirigiu também “Hunger” (2008) e “Shame” (2011), sabe bem o que é isso, tendo crescido na Londres dos anos 1970 e 1980. Por isso, quando adolescente, identificou-se com as mulheres da série de televisão britânica “Widows” (“viúvas”, na tradução), criada por Lynda La Plante. “Elas eram julgadas por sua aparência e consideradas incapazes”, conta ele ao UOL, que na escola foi colocado numa sala para pessoas mais habilitadas para trabalho manual, como pedreiros e encanadores. Virou um artista visual e cineasta premiado.
Seu novo filme, “As Viúvas”, que chega aos cinemas brasileiros no próximo dia 29 de novembro, deriva da série de televisão britânica, mas foi transportada para Chicago, nos Estados Unidos. Na história, Viola Davis é Veronica, que, depois de perder o marido criminoso num de seus roubos, junta-se a outras duas das mulheres de integrantes do bando (Michelle Rodriguez e Elizabeth Debicki) e a uma babá (CynthiaErivo) para dar um golpe e poder sobreviver.
O elenco feminino é bem variado: Viola Davis, uma mulher negra americana de meia idade; Cynthia Erivo, negra inglesa de 1,50 metro; Michelle Rodriguez, americana de origem latina e durona; e Elizabeth Debicki, de origem polonesa, nascida em Paris e criada na Austrália e 1,88 metro. McQueen diz que queria a sociedade refletida na tela.
Leia os principais trechos da entrevista com Steve McQueen.
UOL – O elenco feminino de “As Viúvas” é bem variado. Você pensou nisso quando estava selecionando as atrizes?
Steve McQueen – Não. Basicamente abri a janela e olhei a sociedade em que vivo. Queria refletir a sociedade em que vivo. Quero basicamente que os espectadores se vejam refletidos na tela. Não precisei fazer um esforço para escolher a diversidade, era dado. Especialmente nos Estados Unidos, assim como no Brasil, embora haja um problema sério lá, agora especialmente com o que está acontecendo [na política].
Você esteve no Brasil, certo?
Sim.
Achou racista?
É um dos lugares mais racistas em que já estive, o que é terrível. A maioria da população é africana ou de ascendência africana, não é brincadeira. Mas é um país muito racista. Não houve desenvolvimento, progresso, movimento pelos direitos civis no Brasil, o que é triste. E agora você tem tudo o que está acontecendo [na política], que é mais uma questão terrível.
O filme está saindo na esteira dos movimentos feministas como Me Too e Time’s Up, com apelos por mais inclusão de todos os tipos. Acredita que haverá mudança?
Uns anos atrás teve um negócio chamado “Oscars so white” [que criticava a falta de indicados não-brancos aos prêmios da Academia]. E nada mudou. Vamos ver se esses movimentos feministas vão longe. Talvez a vantagem nesta situação é que muitas das envolvidas são brancas. Vamos ver. Mas não enxergo nenhuma mudança ainda. De qualquer forma, começamos o filme antes de Me Too e Time’s Up.
Esses movimentos vão ter impacto no interesse pelo filme?
Espero que sim. Como artista, meu sonho é fazer algo que possa ser útil, uma obra de arte ou filme que pode ser usado como ferramenta para o progresso. Se for o caso com “As Viúvas”, vou ficar muito feliz.
O filme deriva de uma série de televisão britânica. Por que decidiu transferir a ação para Chicago?
Queria que o filme se passasse num exemplo máximo de cidade ocidental contemporânea, e para mim era Chicago. Também havia a história da cidade, desde antes de Al Capone, de conluio entre criminosos e políticos. O bordão da cidade é: “Eu conheço um cara”. Mas adorava a ideia de olhar para Chicago, mas ver também Londres, Rio, Berlim, Nova York. De ser local e global ao mesmo tempo.
Você conversou com a Lynda La Plante, autora da série?
Sim, ela me deu ideias excelentes. Ela é um ícone e uma revolucionária. Mas foi agridoce perceber que estamos fazendo essa história 35 anos depois e nada mudou. É triste.
Li que você insistiu para Viola Davis manter seu cabelo natural. Por quê?
Primeiro, porque é bonito. Vejo que muitas mulheres de classe média alta mantêm seu cabelo natural. Me inspirei em Thelma Golden, diretora do Studio Museum no Harlem. Mas não imaginava que isso fosse gerar discussões.
Sua escolha de Liam Neeson para ser o marido de Veronica [Viola Davis] teve alguma razão específica?
Acho que quando você sai na rua vê todos os tipos de gente e de relacionamentos. Queria um casal que está junto em que o homem é um criminoso. No caso de Liam fazia sentido também porque os Mulligans [políticos interpretados por Colin Farrell e Robert Duvall] são irlandeses também. O fato de ele ter se apaixonado por Veronica e ela por ele não tem nada a ver. É amor simplesmente.
Você fez questão de mostrar como cada uma dessas mulheres vem de bairros diferentes. Como escolheu as locações?
Chicago é uma cidade muito segregada, o que descobri fazendo pesquisa com a Gillian Flynn, que é de lá e escreveu o roteiro comigo. O que era interessante para mim era mostrar que essas mulheres se juntam apesar de suas diferenças raciais e sociais e formam um time para fazer o que precisam fazer. E isso é incrível.
Para mim, é como uma espécie de chamado às armas para todos nós, para que nos juntemos para derrotar a situação em que estamos, seja o que está acontecendo no Brasil, infelizmente, no Reino Unido com o Brexit e com Trump nos Estados Unidos. Temos de nos juntar e perceber que nossas diferenças não são diferenças na realidade. Assim podemos ficar poderosos e derrotar essa situação triste, porque para eles dividir para conquistar sempre foi seu modus operandi.
É interessante porque muitas vezes as mulheres são jogadas umas contra as outras e ouvem que mulheres não podem colaborar entre si. E o filme mostra o oposto.
Eu gostaria que houvesse mais mulheres críticas de cinema. Porque há muitos pontos de vista faltando. Sou muito grato à repercussão ao filme, mas eu percebo como para a maior parte dos críticos do sexo masculino isso passa despercebido, quando é tão claro e evidente. A verdade é que normalmente essas situações de competição entre mulheres são artificialmente criadas. Eu nunca vi essa competição sendo real. Tenho orgulho disso.
Essas mulheres estão tentando sobreviver num mundo masculino.
Sim. Elas estão reagindo a esse mundo e, de certa forma, lutando e se aproveitando das baixas expectativas que os outros têm em relação a elas. Passei por isso também. Sempre quis ser o melhor que podia porque é importante.
Me lembro que, quando estava fazendo “12 Anos de Escravidão”, me diziam que era um filme impossível, que o mercado internacional não se interessava por filmes com protagonistas negros. Mas o longa acabou arrecadando US$ 131 milhões no exterior, US$ 56 milhões nos Estados Unidos e vendeu US$ 26 milhões em DVDs.
Se não fosse “12 Anos de Escravidão”, não haveria “Moonlight: Sob a Luz do Luar” [vencedor do Oscar de melhor filme no ano passado], nem “Selma: Uma Luta pela Igualdade”, porque os produtores são os mesmos. E não haveria “Pantera Negra”. Tenho muito orgulho do legado de “12 Anos de Escravidão”.
Fonte: UOL
Créditos: Mariane Morisawa