A versão britânica de “House of Cards” fez sucesso na década de 1990 e consagrou seu protagonista, Ian Richardson. Ele recebeu o BAFTA pelo desempenho como Francis Urquhart, um membro do Partido Conservador que chegava a primeiro ministro por vias bem tortas. Cínico, Richardson, volta e meia, conversava com a câmera. O mesmo recurso é empregado na “House of Cards” americana. A série estrelada por Robin Wright e Kevin Spacey, não necessariamente nessa ordem, estreou em 2013. A sexta e última temporada — sem Spacey, envolvido num escândalo de assédio — está na Netflix desde a semana passada. Escrevi sobre seu primeiro episódio. Volto ao tema depois de ter assistido a tudo. Portanto, daqui para a frente, tem spoiler.
O set já estava montado quando o imbroglio envolvendo Spacey veio à tona. A Netflix hesitou bastante antes anunciar que levaria adiante as gravações. Era um desafio e tanto. A trama política sempre se apoiou em duas narrativas que se entrelaçaram: as tramoias do casal Underwood na Casa Branca; e as armações deles traçadas na esfera privada. A relação dos dois, de natureza simbiótica, era de uma fidelidade canina e selada com um arranjo matrimonial heterodoxo, mas sólido.
Fazer a sexta temporada sem Spacey significaria, portanto, desmontar o coração da série: essa aliança do casal. E, de fato, não deu muito certo.
O enredo político se perdeu. Passamos a seguir um roteiro que faz um esforço monumental e constante para ultrapassar a ausência de Francis Underwood. Esse esforço, embora vão, ecoa o tempo inteiro, como um ruído que atrapalha tudo. Há manobras absurdas, que afundam a credibilidade da trama. Isso sem falar no panfletarismo feminista que se instala, como se fosse uma boia de salvação. O maior exemplo é o momento em que Claire anuncia seu gabinete composto exclusivamente de mulheres, um truque barato para épater, mas que desmerece a inteligência do espectador. Para coroar, o roteiro corrompe o perfil dos personagens. É o caso de Doug Stamper (Michael Kelly), que é transformado num maluco incoerente.
“House of Cards” foge de Francis Underwood. Mas se dá mal.