Bolsonaro vai ganhar. Não há tempo suficiente.
E a culpa é (também) do jornalismo.
Nos últimos quinze, vinte anos o mundo mudou tão rápido que fomos engolidos. Em um momento, alguns de nós comemoramos ter acesso aos melhores jornais do mundo: The New York Times, The Washington Post, The Guardian, El País. Estavam todos ali, a um clique: a mesmíssima distância que estavam outros tradicionais como A Folha de São Paulo, o Estadão, O Globo. A gente podia ler tudo. De graça. Na internet.
Mas éramos tão poucos, e tão privilegiados, por ali.
O acesso foi aumentando e as barreiras cresceram. Surgiram os paywalls, assim mesmo, sem tradução. Você queria ler A Folha de São Paulo, clicava no link e dava com a porta na cara. Você ia ler o Times e levava uma sobrada. Você não tinha mais direito de entrar ali. Não de graça. Não sem preencher um formulário. Você desistia.
Aí você acabava entrando no Globo.com, a home page mais lida do Brasil. Mas, ali, em meio àquelas tediosas chamadas noticiosas, tinha todo o apelo do Ego. Você ia lá, sabia da vida de todo mundo. Passava o olho pelas manchetes. Um ou outro jornal local ainda era aberto e lido: mas as matérias dos sites eram tão curtinhas, feitas ali no calor do momento, sem muito contexto. Se eram atualizadas depois, você já nem lia. Já sabia o que precisava, né.
E assim foi por anos. Saiu a homepage. Veio o Facebook.
Logo, logo, os editores perceberam: é muita coisa pra se competir. Tem o post da vizinha, da mãe, tem os gatinhos, os cachorros. O jornalismo se tornou um outdoor. E, para deixar a grama mais verde, se ia ao limite da verdade — por vezes, além. Sensacionalismo, que chamam, né?
Aí surgiu o clickbait. Tinha lá aquela chamada vistosa. Você clicava. Ia para o texto…e, bem, não era bem isso.
Mas olha só: o clickbait revelava o que você queria saber. Seus interesses, seus gostos. Isso era útil para alguém.
Milhares de sites começaram a surgir só com clickbait. Mas a verdade — mesmo a super elástica — não é tão atraente assim. Há dias e semanas em que não há nada muito apelativo. Em que não há uma foto com ilusão de ótica de um vestido, nem um famoso fotografado traindo a namorada.
Se a realidade não atrai, inventamos ou resgatamos algo. “Jibóia come criança — aviso: foto chocante!”. Você resiste? Basta dois parágrafos com 4 linhas cada, uma foto de 1998 manipulada em três minutos de Photoshop. No tempo real do Analytics, 800 pessoas online. Os anúncios se desdobram na tela. Um ou outro clica. Essa matéria rendeu!
Os clickbaits passaram a ficar mais violentos: jibóia que come criancinhas parece algo fora da realidade. Mulheres assassinadas. Foto de 2000, textinho de 2015. Bota no ar: “Mulher marca encontro pelo Tinder e acaba degolada”. Aqui, tem mais sentimento: medo, raiva, pena. “Também, quem manda ir pra essas coisas…”. Ódio. Bingo.
Houve um tempo em que os dois existiram e disputaram espaços no Facebook, numa briga acirrada, que aproximavam os dois. De um lado, veículos tradicionais, com posts cada vez mais sensacionalistas, cada vez mais desenhados para despertar ódio, raiva e, vez ou outra, “fofura”. Do outro, veículos bissextos, feitos para ganhar cliques e anúncios do GoogleAds, sem se importar com os fatos.
A diferença é que quando você clicava no post do jornalzão, você era barrado. No do outro, que você nunca tinha nem visto, você entrava. Aos poucos, você deixou de ir no jornalzão: só lia a chamada e deixava seu comentário furioso. O que você lia mesmo, quando lia, era naquele site duvidoso.
Enquanto estávamos distraídos entre o sensacionalismo e as fake news no Facebook, algo acontecia longe dos olhos públicos. O WhatsApp ganhava corpo.
Para as empresas de mídia, o WhatsApp sempre se apresentou como uma esfinge. Um potencial enorme, 120 milhões de usuários, mas como usá-lo pra notícias? Ter redatores dedicados a textos curtíssimos? Enviar o link? Na grande maioria dos veículos, era só um número para enviar alertas e sugestões de pautas. Nunca foi visto como um Facebook.
Os grupos cabiam 200 e poucas pessoas. E, também, como faturar? Quando nos perguntávamos para onde o público do Facebook estava indo — principalmente depois daquela grande mudança de algoritmo — não passava pela cabeça o WhatsApp. É snapchat. É instagram. É stories.
A gente achava que o WhatsApp era só pra comunicação entre pessoas que se conhecem. Que ninguém dava importância praquelas correntes. Ignorávamos os “Bom dia!” e fazíamos piada de quem ficava morrendo de medo do aplicativo ser bloqueado. Devíamos ter prestado mais atenção quando víamos que as matérias mais lidas eram justamente as que falavam sobre aqueles bloqueios — Na Folha de São Paulo, uma dessas matérias rendeu 42 milhões de visualizações
Deixado de lado pelo jornalismo, o WhatsApp foi construindo sua própria linguagem.
Não foi um estilo que surgiu do nada. Foi com os melhores exemplos das fake news construídas lá atrás no Facebook. Emoção pura, em estado bruto. Sem delongas, sem espaço para mais de uma interpretação. É isso e pronto, nada mais. Não há meias palavras, não há “suspeito de assassinato”. É assassino.
“Alerta geral! Se alguém te parar nos estacionamentos abaixo (liste todos os supermercados conhecidos) oferecendo perfume e papel para cheirar. (em negrito) não cheire.
É um novo golpe ou nova forma de roubar.
O papel está com droga,
que te fará desmaiar
aí eles roubam,
sequestram,
estupram ou
fazem o pior com você.
São papéis iguais
das perfumarias,
não aceitem.
Encaminhe essa mensagem para
seus amigos e familiares
salve uma vida
Mensagem recebida do
Departamento de Polícia”
Nossa, quantas vezes você já não viu aquelas moças com esses papeizinhos na mão oferecendo perfume! E podia ser um golpe! Você não gostaria de alertar quem você ama? E, mais, ser o primeiro a fazer isso?
Então, sim, você encaminha. É um serviço que você está prestando. Sua tia recebe, lembra que fez compras ontem, que passou no estacionamento do Açaí Atacadista. “Nossa, poderia ter sido eu”, talvez ela escreva. Ela te agradece. Um vínculo de confiança é formado.
Repita isso durante quatro, três, dois anos. Você abre o WhatsApp pela manhã, você está em 15, 20 grupos. Você sabe de todos os golpes em primeira mão, você vê os vídeos que todo mundo está vendo, compartilha os alertas. Você está prestando um serviço, está sendo empoderado.
Durante cinco, quatro, três, dois anos aparece para você aquele cara que fala o que pensa. Que fala mal da mídia tradicional — aquela, que você não lê há anos, porque toda vez é barrado. Mas que você comenta de vez em quando no Facebook, porque fica com raiva do que ela posta — E quem fica com raiva da mensagem, acaba ficando com raiva do mensageiro também.
[Aqui, temos um parênteses: O descumprimento do Marco Civil da Internet. De 2014, a lei estabelece a neutralidade da rede, ou seja, não pode haver diferenciação do tráfego entre sites e serviços. Mas as operadoras de telefonia oferecem WhatsApp ilimitado de graça: é só não sair dali que você não gasta sua internet. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica autorizou. Para muitos dos 120 milhões de usuários do serviço no Brasil, o WhatsApp É a internet]
Aquele cara diz coisas que você às vezes curtia no Facebook, mas não compartilhava. Ele às vezes diz coisas que você até comentou naquele grupo fechado no Facebook, que você mal entra hoje em dia. Aquele cara fala coisas que você concorda, mas para falar assim…poxa, corajoso. [insira o Cambridge Analytica aqui, ou qualquer serviço de raspagem de dados]
Aquele cara fala exatamente o que você queria falar, mas não dá para falar em público. Sem contestações, sem críticas, sem o contraditório.
Mas é ele quem tá falando, né. Não sou eu. Vou jogar lá no grupo. Em um grupo fechado, pessoas conhecidas, dá até para concordar um pouquinho com ele.
Não é que ele seja homofóbico, mas…ele só não quer um vizinho gay. Imagina, né, você no elevador e dois homens se beijando. Ele não odeia gays, ele só não quer esse exibicionismo. Eles querem aparecer, né?
A mulher saí na rua quase nua, com a saia lá em cima, sutiã aparecendo. Não quer que o homem olhe? Ela tá querendo é isso mesmo! Aí quando querem passar a mão, acha ruim. Toda safada, se insinuando, e agora vem dizer que é estupro. Ah, vá!
É menor de idade? Até parece que com 15 anos não sabe o que é errado. Tem que apanhar mesmo. Pau que nasce torto nunca se endireita. Tem que matar bandido. Para que o estado ficar sustentando?
Você não argumenta. O texto já vem pronto. Com o fato e a opinião. Os dois andam juntos.
Você não argumenta. Depois de um tempo, você já não sabe como: não lê livros de ficção desde o segundo grau, não lê jornal, assiste à televisão com o celular na mão — e não acredita mais na Globo. Você não lê mais notícias pela internet há uns sete, seis, cinco, quatro anos…
Na sua “feira” de informação tem aquelas vozes dos áudios que você já conhece. Tem aqueles vídeos que você já reconhece a identidade visual da edição. Tem aquelas correntes com gírias que você já incorporou ao seu vocabulário. Tem aquelas fotos engraçadas.
E tem aquela família que você já conhece. Tem o pai e tem os filhos. Eles mandam vídeos como os que você faz, estilo sefie, mandam textos que você concorda, mandam fotos de coisas que parecem bem urgentes. Eles odeiam o PT. Acabou com o Brasil.
Você já foi assaltado? Já sentiu a impotência que é levarem tudo que você tem? Ninguém faz nada por você. Ele diz no WhatsApp que é tudo porque o ladrão tinha uma arma. E você nem pode ter uma. Se tiver, é preso. Culpa do PT.
Mas o cara que você conhece há anos, ele e a família dele, que fala com você quase todo dia, ele diz que você pode ter uma arma. Que isso vai acabar. Que vai tirar o PT.
E isto por seis, cinco, quatro, três, dois anos. TODO SANTO DIA.
Você acha que é com um ou dois meses de “combate a fake news” ou com seu fact-checking cheio de metodologias que vai conseguir quebrar essa relação de confiança construída ao longo de anos, numa linguagem que ele entende e reconhece?
Você acha que é seu textão na sua bolha no Facebook?
Seus stories bonitinhos com gifs que não abrem em baixas conexões?
O jornalismo descobriu o WhatsApp tarde demais. Já havia uma linguagem estabelecida, já havia uma relação de confiança. Existia todo um discurso aceito: a mídia (a esquerda) mente, a mídia (a esquerda) manipula. Quando vemos um texto típico de WhatsApp, imediatamente identificamos como falso: sua apresentação é incompatível com o bom jornalismo. Será que o contrário também acontece com quem é acostumado à linguagem zapzapiana?
A impressão que o segundo turno dá é de que a esquerda descobriu o WhatsApp somente quando esta campanha eleitoral começou. Dá pena ver os textos que compartilham: para dizer que o kit gay é mentira, escrevem textos quilométricos, com “Ler mais” no final. Enviam links: você acha que eu vou gastar minha internet saindo do WhatsApp para ler você falando mal do meu amigo? Usam ironia! Desprezam a força de exclamações em fila indiana!!!!!
Fazem imagem com textos enormes, em português perfeito, com palavras como “revogação” e “PEC”. Que danado é isso?!
Sabe como o outro lado faz para falar do kit gay? Uma foto de uma mamadeira com uma bico de pênis. Tosco assim, direto assim.
Em um mundo em que somos bombardeados por informações o tempo todo, a mensagem que o WahtsApp traz é de que não há espaço nem tempo para se apostar em sutilezas. Para se desenvolver interpretações.
O fato tem que ser entregue com a interpretação e a opinião. Não dá pra ficar raivoso o tempo todo. Há modulações de sentimentos: quem te passa a piada passa também o gari que ganhou na loteria (esperança), a oração da semana (paz), o policial morto no tiroteio (indignação) e o kit gay nas escolas (raiva). E a propaganda do político que vai fazer o que você recebe de ruim acabar (alívio).
Mesmo que nada disso exista, de fato. O que vale é a sensação. E por isso tantos se negam a acreditar que algo que receberam é mentira. Porque o jornalismo hoje não tem nem a coragem de dizer “mentira” ao invés de “fake news”.
Para essas eleições, não há mais tempo para o jornalismo.
A relação de confiança hoje estabelecida por quase metade do eleitorado não é com o jornalismo sério, apurado, investigado, bem redigido. Se fosse, o resultado nas eleições seria outro: uma boa parcela dos eleitores seria chamada à razão.
Há como reverter isso, claro: o bom jornalismo é de uma potência incrível. Mas há uma enorme parcela da população que não tem acesso ao lado de lá do muro dos paywalls, das TVs a cabo e dos documentários da Netflix. E que nem ouviu falar da existência deste vibrante novo jornalismo independente. O bom jornalismo não precisa somente ir para onde as pessoas estão: precisa que as pessoas queiram ir até ele, sem barreiras.
Uma nova relação precisa ser criada e estabelecida. Isso leva tempo.
Não há mais tempo.
Fonte: Medium
Créditos: Maria Carolina Santos