Bruna Silva, mãe de Marcus Vinícius
Existem textos que nascem em uma velocidade incrível e ficam prontos em uma tarde. Existem textos que demoram anos e são resultado de muita, muita pesquisa e diálogo.
Hoje escrevo um texto diferente, a história de duas mulheres negras em uma rodoviária do norte fluminense. Como tantos portos de partida e chegada de trabalhadores. A história das mulheres de uma nação com altos índices de assassinato motivado por ódio, ciúmes, posse, futilidade.
Este é um texto contra o ódio. Contra a morte e contra o assassinato de nossos filhos. Em 9 de agosto, ocupamos a rodoviária velha de Campos dos Goytacazes. Véspera do Dia do Basta. Uma aula pública. Não só para denunciar as reformas impopulares de Temer e seus aliados. Também ocupamos este espaço para conversar diretamente com o trabalhador sobre o Caveirão, veículo que põe terror nas populações de favela do Rio de Janeiro há mais de uma década e que agora, durante uma intervenção fracassada, chega a uma das áreas mais estigmatizadas da maior cidade do interior do estado.
Durante minha fala, lembrei a morte de Marcus Vinícius, com camiseta de escola, na Maré. Este é um dos “saldos” desta intervenção. A morte de crianças inocentes em áreas de periferia.
Ao longo da última década, vi tanto choro de mães sobre o caixão de seus filhos que era impossível não lembrar de Carlos Eduardo, morto aos 10 anos na Maré, com um celular na mão, Ruan Bruno Gomes, aos 2 anos, na favela do Metrô, Maracanã, Vanessa Vitória, 11 anos, moradora da Camerista Méier, morta com um tiro na cabeça, na frente de casa.
Ou de Sofia Lara Braga, de dois anos e sete meses, atingida por uma bala no espaço infantil de uma lanchonete na qual brincava em Irajá, Fernanda Adriana, de 7 anos, atingida no tórax, na Parque União, na Maré.
É preciso que se diga o nome de cada uma das crianças mortas ao longo de 2017. E antes, muito antes… Quando estes nomes sequer ocupavam espaço nos jornais locais.
Ao terminar minha fala na rodoviária, fui recolher as imagens que mostravam homens com máscara de caveira, helicópteros no alto dos morros, espaços de baile, enfim, a vida cotidiana das favelas no Rio de Janeiro e no Brasil.
Carregava também cartazes de Marielle Franco e Anderson Gomes. Quanto fui guardá-los, duas senhoras negras de aproximadamente 50 anos de idade se aproximaram de mim, estenderam a mão e solicitaram os cartazes. Confesso que em todos estes anos nunca vi olhares tão profundos e nunca me comuniquei tão claramente sem palavras com duas desconhecidas.
A força daquele momento é de longe o que de mais significativo vivi neste ano. O texto nasce porque elas encarnaram ali as mães que têm perdido seus filhos. Não só por armas, mas por companheiros que usam a vingança como forma de atingir mulheres que têm a coragem de fugir de relações abusivas para salvar a vida de seus filhos.
Aquelas mulheres nada me disseram. Não sei como era sua voz. A imagem delas permanece, porém, como algo vivo o suficiente para encorajar milhares de outras a rejeitar candidaturas que se sustentem no ódio.
Discursos de ódio são conhecidos na história. São a face mais visível de sistemas cínicos e covardes. A face mais visível de crença falida em Estados punitivistas.
Mas sobretudo, são a face mais visível do racismo, do ódio de classe, quando é inegável que os mortos concentram-se em um único lado. O nosso.
Respeito profundamente os policiais, pois sei o quanto são fundamentais às cidades, ao cotidiano. E o quanto são submetidos às mesmas condições de trabalho precárias que professores, enfermeiros, trabalhadores. Com a diferença de que neste confronto eles também estão morrendo.
Quem zela por suas vidas? Por que mais armas fariam diferença nesta guerra contra os pobres?
Este texto não é uma acusação ao Estado punitivista. É uma posição sobre rejeitar o ódio. Não podemos ser representados por homens que defendem o cidadão de bem como se existisse algum inimigo do outro lado. Quem está do outro lado?
As mulheres são as chefes de família de um país improvável. São a reserva moral de um pântano de escândalos. Não é retórica. Elas permanecem no lar, zelando pela criação dos filhos após o divórcio.
E se me perguntam sobre a criminalidade da Rocinha, digo: há quantos jovens envolvidos no crime em uma população de mais de 100 mil habitantes? Nem 10%. O restante está entregando pizzas, estudando, nas farmácias, nas lojas, como trabalhadores de hotéis de luxo da zona sul.
Onde está mesmo nosso foco? Digamos não ao discurso de ódio. Vamos rejeitar quem pretende enjaular nossos filhos e netos para manter a ordem. Esta ordem não nos interessa. Candidaturas de ódio, como a de Jair Bolsonaro, não nos representam. Gostaria de lembrar as palavras de Agatha Gomes, viúva de Anderson Gomes, morto com Marielle… quando fala sobre sua aliança de casamento : “Pra mostrar nosso amor, pra todo mundo, pra ver de longe”.
Por que estas vidas importariam menos? Por quê? Anderson não será esquecido, assim como todos os nossos mortos.
* “Sócia” desde 2018
Fonte: Carta Capital
Créditos: Luciane Soares da Silva