“Estamos passando fome. Essa é a realidade”, diz. “[Na Venezuela] Eu só conseguia comer uma vez por dia e às vezes nem comia para que meus filhos comessem.”
Após quatro meses em São Paulo e com acesso a três refeições por dia no albergue onde mora, ele recuperou seu peso anterior. Mas Daniel afirma que não quer se acomodar: “Não vim esperando que o governo me dê nada. Vim para trabalhar. Não queremos ficar parados até que algo caia do céu”, diz o venezuelano, que conseguiu trabalho em uma rede de lojas.
Daniel enfrentou uma “odisseia” para percorrer os quase 1.000 km de sua cidade até Roraima. “Passei fome, frio, calor, meus pés ficaram cheios de bolhas”, lembra.
Realidade bem diferente de antes da crise: “A gente vivia bem. Eu tinha três ônibus. Por falta de dinheiro e peças de reposição, eles se deterioraram até ficarem irrecuperáveis”.
Sua meta é se estabelecer e enviar dinheiro para os dois filhos. “Sinto muita saudade deles. Mas tenho que deixar de lado essa saudade para que eles não passem fome.”
Daniel divide um quarto cheio de beliches com outros 166 conterrâneos no Centro Temporário de Acolhimento (CTA) São Mateus, onde está a maioria dos venezuelanos vindos de Roraima pelo “processo de interiorização” do governo federal.
Desde abril, 820 pessoas foram realocadas, segundo a Casa Civil: 287 em São Paulo e o restante, em Cuiabá, Manaus, Rio, Brasília, Conde (PB) e Igarassu (PE). Na terça (21), o governo disse que mais mil venezuelanos serão levados para outras cidades a partir do fim de agosto.
Muitos dos que moram no CTA estão na mesma situação de Daniel: vieram sozinhos para tentar ajudar os familiares que ficaram. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, até agora 75 deles conseguiram trabalho em empresas parceiras.
É o caso de Luis Miguel Castro, 34, que comemora a decisão de ter vindo para São Paulo. “Aqui vejo um futuro melhor”, diz ele, que deixou quatro filhos na Venezuela.
Em seu país, Luis era ferreiro, eletricista e pedreiro. Nos últimos tempos, por mais que trabalhasse, “o dinheiro nunca dava”, conta.
Doze familiares dele estão no Brasil atualmente. Quatro vieram para São Paulo e os demais estão em Roraima, aguardando para sair.
Um de seus sobrinhos, Anderson Martinez, 30, passou os primeiros 15 dias em São Paulo buscando emprego a pé. “Saía às 5h e voltava às 19h, 20h. Passava horas caminhando”, diz ele, que agora trabalha em uma rede de fast food.
“Tem emprego na Venezuela, mas de que adianta ganhar 5.000 bolívares por mês se o arroz custa 10 mil? Lá não se vive, se sobrevive”, afirma.
Anderson se emociona quando lembra das filhas. “Sempre que eu lembro que perdi o aniversário da mais velha… E também o da mais nova… Teve dias que eu chorei bastante. É tanta frustração que às vezes a gente precisa desabafar.”
Mas tenta manter um sorriso no rosto. “Apesar de ser uma luta constante, a vida é bela. De tudo que é ruim dá para tirar algo bom.”
Nem todo mundo conseguiu se estabelecer. O cozinheiro e pedreiro Carlos Nunez, 43, ainda está procurando emprego. “Fácil não é, mas aqui vejo mais possibilidades”, afirma.
Como não conseguiu emprego formal, Ramón Torres, 70, passou a vender balas na rua. “Não consigo trabalho em empresa porque falam que eu já estou muito velhinho”, lamenta.
Ramón, que tem cinco filhos e 12 netos, trabalhava como pedreiro, pintor e tinha uma mercearia em Ciudad Bolívar. Para ajudar a pagar a viagem até o Brasil, passou alguns dias garimpando ouro na fronteira.
Aqui, queixa-se de que, devido à ociosidade, está engordando. “É o que acontece quando a gente não sua. Eu me sinto forte. Fui criado com bastante vitamina, proteína. A Venezuela era um país muito rico. Ainda é, mas está mal administrado.”
Os entrevistados disseram que, pessoalmente, não sofreram xenofobia em Roraima, apesar de terem vivido em condições precárias por lá. “Aguentamos as dificuldades porque sabemos a que viemos. Mas não posso falar nada de ruim dos brasileiros”, diz Daniel.
Segundo outro venezuelano que mora no CTA, Alejandro Gerardo, 33, as condições em Roraima eram melhores no início do ano, quando ele chegou: “Os brasileiros nos ajudavam muito. Infelizmente houve episódios de delinquência, muitos deixaram de ajudar, as portas se fecharam”.
Nos primeiros dias dormindo ao relento, “escorreram lágrimas” de seu rosto, conta. “É difícil deixar uma cama, sua casa, toda a sua vida para dormir em uma praça sem teto, sem abrigo, sem proteção.”
Treinador de futebol, Alejandro passou a torcer pelo Corinthians, assim como a maioria dos venezuelanos do CTA.
Ele teve suas duas malas roubadas em Roraima e ficou sem celular após um assalto em São Paulo. Mas não reclama do tratamento que recebe aqui. “Acho a cidade muito bonita e sou agradecido a todos os que me ajudaram”, diz.
Entre suas metas, estão alugar um espaço próprio, estudar serviço social e criar uma ONG para crianças de baixa renda. “Aqui a maioria somos profissionais, temos mão de obra qualificada. Infelizmente fomos atingidos por essa situação na Venezuela. Mas vamos nos reerguer, porque somos construtores, tanto da nossa vida quanto do nosso entorno”, afirma.
Fonte: UOL
Créditos: UOL