A morte da Justiça

Rubens Nóbrega

Aconteceu no século XVI a história que resumo adiante, contada por ninguém menos que José Saramago em capítulo intitulado ‘Da justiça à democracia, passando pelos sinos’.

Certo dia, numa aldeia dos arredores de Florença, seus moradores foram surpreendidos pelo soar melancólico do sino da igreja, como se estivesse a anunciar a morte de alguém.

Ninguém tinha notícia de alguma pessoa muito doente ou de qualquer incidente violento que tivesse resultado em morte. Daí a surpresa e, a seguir, romaria até a porta da igreja.

Com praticamente todos atraídos pelos dobres, o suspense acabou quando o sino parou de tocar e lá de dentro da igreja saiu não o sineiro, mas um camponês que confirmou ser ele quem estava tocando o sino.

“Quem morreu?”, perguntaram em coro ao rapaz, que respondeu pronta, firme e enfaticamente:

“Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta”.

Antes que emendassem novas perguntas, o camponês antecipou-se, explicando o que segue.

Um senhor do lugar, nobre e ganancioso, sem escrúpulos, resolveu aumentar autoritária e indiscriminadamente a extensão de suas terras. E o fez invadindo e fincando marcos e cercas dentro das terras dos vizinhos, entre esses o camponês.

Prejudicado, o rapaz pediu, implorou e… Nada! Vendo que não conseguiria repor os limites de sua propriedade, finalmente resolveu levar o caso à Justiça. Em vão. A Justiça ficou do lado do mais forte, do mais rico, do mais poderoso.

Não se sabe a reação dos concidadãos do injustiçado diante da injustiça, mas é certo que ele resolveu gritar ao mundo a sua indignação através do sino, pois apenas o sino plangendo desgraça conseguiria reunir tanta gente no mesmo canto, naquela aldeia.

Fez isso, especula-se, talvez pra ver se contando seu infortúnio à multidão alguém o ajudava ou a partir de sua denúncia criava-se em torno dele uma rede de solidariedade ou de protesto capaz mobilizar o povo contra julgamento tão deplorável.

Bem, resumido o caso, vamos às imperdíveis lições e ilações que o inexcedível Saramago tira do episódio. Deixo vocês com ele, a partir deste ponto.

***
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça.

Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando.

De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.

Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo.

(…) é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos…

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

 

QUEM MANDOU
Veio de qualificadíssima leitora, que me honra com sua leitura e eventual colaboração. Por que justo essa história? Ela mesma vai explicar. Assim:
– Prezado Rubens, tem alguns dias, desde que você escreveu sobre o caso da Dra. Lucia Ramalho, que tenho lembrado de lhe enviar essa pérola escrita por José Saramago. Para mim e para muita gente dessa nossa Paraíba, nesse “reinado” você tem representado o camponês de Florença.
Não revelo seu nome, Professora, dando-lhe o crédito merecido, porque não deu tempo de pedir autorização. Tive urgência de me aproveitar do caso do camponês para esta domingueira.
Ah, e não me cabe representá-lo isoladamente. Ele é maioria; sua revolta, o sentimento de quase todos nós.