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“Fui a primeira cobaia da CBF”, diz ex-treinadora da seleção feminina de futebol

Ex-jogadora Emily Lima foi a primeira e única mulher a dirigir a seleção brasileira de futebol feminino. Um ponto fora da curva após três décadas de técnicos masculinos, a treinadora jogava como volante e atualmente comanda o time feminino do Santos Futebol Clube.

Emily liderou a seleção entre 2016 a 2017, mas após dez meses, foi demitida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e substituída por Oswaldo Fumeiro Alvarez, mais conhecido como Vadão, que já havia comandado o time por dois anos, de 2014 a 2016. Os técnicos anteriores, todos homens, também atuaram na função com uma média de dois anos no cargo.

Com a marca de sete vitórias, um empate e cinco derrotas em 13 jogos à frente da seleção, Emily teve passagens, enquanto jogadora, pelos clubes brasileiros Saad, São Paulo, Palestra de São Bernardo e Veranópolis. No exterior, defendeu os times espanhóis Estudiantes, Sporting Huelva, Puebla de la Calzada, Prainsa Zaragoza e Unió Esportiva L’estartit.

Por ter cidadania Portuguesa, em 2007 foi convocada para integrar a Seleção Portuguesa de Futebol Feminino e no ano seguinte jogou na Itália pelo Nápoli, onde encerrou sua carreira como jogadora em 2009. Foi treinadora dos times femininos do Juventus, do São José, comandou também as seleções brasileiras sub-15 e sub-17.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Emily Lima comenta sobre o machismo e falta de investimento no futebol feminino, além de sua saída da seleção. A treinadora foi a única que não teve oportunidade de completar ao menos um ano de trabalho e afirma que era questionada diariamente por suas decisões. Ela também critica a ausência de mulheres na equipe técnica na delegação Copa do Mundo.

“Não tem uma árbitra mulher na Copa do Mundo. Nem no árbitro de vídeo, nem na prática mesmo, no campo. É muito complicado. E nós temos mulheres árbitras prontas para estar em uma Copa do Mundo masculina, mas por serem mulheres, elas são vistas de outra forma. A mulher está totalmente desvalorizada em todos os aspectos”, diz Emily.

A treinadora das Sereias da Vila, como é conhecido o time feminino do Santos, avalia que sua passagem pela CBF “foi uma grande jogada”, já que havia uma pressão da Federação Internacional de Futebol (Fifa) para a presença de mulheres na seleção. “Eu fui a primeira cobaia da CBF. Isso eu tenho muito claro. Eu fui a primeira cobaia. Estava claro que uma mulher ia entrar e logo em seguida, iria sair. E eu fui a escolhida”.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato – Como é ser mulher no futebol brasileiro?

Emily Lima – Não tive muita dificuldade como atleta, mas como treinadora, diariamente, temos que provar que nós sabemos sobre aquilo que gostamos de fazer. Nós sabemos de futebol tanto quanto um homem sabe de futebol, se é que  muitos homens que falam que gostam de futebol sabem falar sobre futebol. Só que como ele é homem, ele não é questionado, e ai cabe a nós [mulheres] buscar conhecimento para que sempre que houver essas situações, estarmos preparadas para poder questionar, bater de frente e responder.

Acredita que o machismo ainda é muito presente no futebol de forma geral? Seja com torcedoras, atletas ou treinadoras?

Eu acho que sim, e não só no futebol. Acho que é uma questão bem mais cultural mesmo, por ser uma mulher. E a mulher, não só no futebol, no geral, é questionada. Estamos falando de um esporte, mas poderíamos estar falando sobre a presidente de um clube, da presidência de uma empresa. A mulher é muito questionada por ser mulher. É o que eu acredito, o que eu vejo.

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Vai levar um tempo para que as coisas mudem. Estava lendo uma matéria sobre a arbitragem. Não tem uma árbitra mulher na Copa do Mundo. Uma. Nem no árbitro de vídeo, nem na prática mesmo, no campo. É muito complicado. E nós temos mulheres árbitras prontas para estar em uma Copa do Mundo masculina, mas, por serem mulheres, elas são vistas de outra forma. A mulher está totalmente desvalorizada em todos os aspectos.

Assistimos a muitos episódios de abusos e assédios durante o torneio mundial. Esses episódios de assédios são comuns para as mulheres que trabalham com o esporte? Tem algum caso que possa relatar?

Claro que a gente tem, mas eu prefiro não abrir porque não sei se posso abrir. A gente vê muita coisa em relação às bandeirinhas no futebol. Um desrespeito total, tanto da torcida como dos próprios atletas, e até mesmo dirigente de clube. É complicado. No futebol feminino também acontece, é inevitável. Cabe às mulheres denunciarem, se impor, e mudar isso. A mudança vem de nós, porque se as coisas acontecerem e nós aceitarmos, deixar que aconteçam, e não haver mudança em nada nesse sentido, as coisas vão continuar nesse desrespeito total às mulheres. Eu, muitas vezes, debato e sou mal vista por conta da minha posição, porque eu falo exatamente o que aconteceu. E sou mal vista e queimada por alguns diretores e dirigentes por conta disso.

Mas por quais motivos, especificamente?

Por chegar na frente e dizer: – Se você estava acostumado com isso, comigo não vai acontecer. E aí se compra uma briga muito grande.

Se posicionar tem um preço…

Muito caro. Eu paguei muito caro por ser eu mesma na seleção brasileira.

Você foi a primeira mulher a coordenar a seleção feminina de futebol e após 10 meses foi demitida, com um saldo maior de vitórias do que de derrotas. Houve uma certa polêmica na época, e você ganhou apoio de outras jogadoras. Acredita que esse episódio da demissão envolveu a  discriminação de gênero de alguma forma?

Não sei se de gênero, mas sim de posição. Eu tinha minha opinião do que era certo e errado e, muitas vezes, o que era certo pra mim, era errado pra eles. E o que certo pra eles, era errado pra mim. E eu acabei batendo de frente em relação a alguns posicionamentos que eu não achava correto. Sempre bati muito de frente por querer o melhor para as atletas e eu acho que com essas coisas, treinamento e dia-a-dia, fez com que, não só eu, mas toda a comissão técnica, tivéssemos o apoio delas [das jogadoras]. Elas viram que estávamos fazendo diferente, não só como comissão técnica, mas querendo o melhor para as atletas.

Não sei se foi por conta de ser mulher, pode ser que sim. Mas eu acho que se fosse um homem na minha posição, que colocasse suas ideias como eu coloquei, do que é certo ou errado, a pessoa não ia durar muito tempo. Lá existe um sistema e você tem que fazer parte dele. Se não fizer, eles te descartam, com qualquer resultado que você tiver.

Quais foram esses enfrentamentos que você cita?

Meu grande problema foi com o nosso coordenador. Isso eu deixei muito claro para todos os meios [de comunicação] que me procuraram logo na demissão. Isso está claro pra todo mundo. Meu problema foi por conta de ideias. Meia dúzia remava para frente e dois remavam para trás. Como éramos subordinadas a eles, eles fizeram para que tudo acontecesse a favor deles com a minha demissão, e voltasse ao que era, a comissão anterior que aceitava o que acontecia.

Qual o significado de ter sido a primeira mulher a comandar a seleção feminina?

Hoje, friamente, acho que isso foi uma grande jogada. Não digo nem que fui a primeira mulher a comandar… Mas eu fui a primeira cobaia da CBF. Isso eu tenho muito claro. Eu fui a primeira cobaia. Estava tudo muito claro que uma mulher ia entrar e logo em seguida, ela iria sair. E eu fui a escolhida.  Estava muito, muito, muito claro. Pra mim foi bom por conta do currículo. Conseguimos colocar em prática um trabalho durante dez meses, que foi o que durou e foi isso. Algumas coisas aconteceram pós demissão, houve um reconhecimento por, em tão pouco tempo, conseguir fazer um trabalho que dava para visualmente ver a diferença. Isso para mim foi importante, não por ser a primeira mulher a estar na seleção.

Fui cobaia por conta da Fifa estar pressionando e aí a CBF colocou uma mulher, e logo em seguida disse: “- Está vendo? Colocamos uma mulher e não estava dando resultado”. Mas não sei no que não estava dando resultado, mas eles alegaram isso. A justificativa foi essa. Então assim, temos que aceitar porque eles são os caras no poder, no momento.

A Fifa está pressionando não só para treinadora, mas como diretora, supervisora, assistente, médica, fisioterapeuta. Ela vem forçando isso, e a seleção que tem mais dificuldade nesse sentido, é a seleção brasileira por conta de muita política que existe dentro da CBF.

Já foi, já passou. Hoje eu tenho que pensar somente no Santos, também sou a primeira mulher a estar aqui no Santos, mas isso não é algo que me preocupa. O que mais me preocupa [atualmente] é conseguir fazer com que as atletas entendam e plantar as sementinhas para que elas saiam melhores. Eu vejo o futebol feminino brasileiro ainda muito atrás de outras seleções em muitos aspectos. Muitos.

E no que tange estrutura e incentivo? Se uma menina brasileira tem o sonho de se profissionalizar como jogadora, há a possibilidade dela alcançar esse objetivo?

Não, não tem. Estamos conversando há algum tempo aqui e só falamos das dificuldades. E é essa a realidade do futebol feminino brasileiro, infelizmente. Hoje essa garota vai na escola e a educação física é precária. Não só a educação física, mas o esporte no geral. Na faculdade também não tem mais a prática do esporte como tinha antigamente. Aí em relação aos clubes, só pensam no adulto e mais ou menos ainda.

No Brasil, hoje nós temos cinco equipes que são consideradas “profissionais, vamos dizer assim. O Santos é uma delas, o Iranduba, o América Mineiro, o Sport Recife e a Ferroviária. Imagine uma atleta que quer jogar futebol. Ela tem que procurar só cinco equipes dentro do Brasil todo. É muito difícil e aí eu entro no sonho. Se ela quer ser jogadora mesmo, ela vai ter que passar por várias dificuldades e, se tiver talento, ela vai conseguir chegar um dia em um clube como esse.

E pra piorar, recentemente, o Governo Temer anunciou corte nos já enxutos orçamentos destinados ao Esportes e Cultura, que será ainda menor em 2019…

Olha aí. Onde nós vamos parar? As justificativas são complicadas. Esse dinheiro não vai para onde eles dizem que é destinado. Se fosse ainda, tudo bem. Mas sabemos que não vai.

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Qual o dano que esses cortes irão causar?

A gente força as crianças a irem pras ruas, porque o esporte, querendo ou não, tira as crianças das ruas. Vou citar mais o futebol masculino que é muito o sonho de um menino que muitas vezes mora na periferia, e quer ser jogador de futebol, e muitos deles realmente viram jogadores profissionais e ajudam a família. São ídolos, conhecemos muitas histórias nesse sentido. E aí vamos na contramão. Tiramos tudo isso e faz com que eles fiquem na rua. Não conseguimos criar ações, estratégias, de tirar mais essas crianças da rua com o esporte. Vamos na contramão mesmo e dane-se. Porque não estamos preocupados com isso. O país não está preocupado com isso.

Há muita diferença em comparação ao futebol masculino em relação aos salários, por exemplo? Na sua opinião, a criação de quais campeonatos e estruturas específicas são centrais e que atualmente faltam para o futebol feminino?

Ah, é coisa muito longe. Não dá nem pra citar. É uma discrepância gigantesca, não tem nem comparação. Não sei nem se a gente devia se preocupar com isso, temos que nos preocupar com a igualdade de competições, na igualdade de premiações da mesma entidade. Fazer com que essas meninas joguem mais e não joguem menos. O salário é o de menos. Ao fazer com que elas joguem, as coisas vão acontecer naturalmente. Porque se a gente for falar de salário aqui, não adianta. Todo mundo sabe que um jogador da série A ganha milhões enquanto uma jogadora da série A ganha reais.

Na sua opinião, a criação de quais campeonatos e estruturas específicas são centrais e que atualmente faltam para o futebol feminino?

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Uma das coisas, porque faltam muitas, poderia ser as entidades, e aí vou citar a CBF, que é a entidade maior, fazer um campeonato brasileiro, como já faz na série A1 e série A2, mas pode melhorar muitíssimo. E aí falamos muito da premiação. No campeonato masculino são milhões de reais, a do feminino é uma merreca. É mais a parte de respeito mesmo e falar: “O masculino tem isso, vamos tentar fazer isso com o feminino também”.

No ano que estivemos lá, em 2016, a CBF sumiu com a Copa do Brasil pra fazer a série A1 e série A2. E aí é o que falei anteriormente. Eles tem que pensar em fazer com que as mulheres joguem mais no Brasil, não menos. Eles tiraram a Copa do Brasil e só ficou o campeonato da série A1 e série A2 no país, sendo que nosso país é quase um continente na verdade. E ficam somente 32 equipes jogando, mas e as demais? Eu acho que tinha que começar essa organização da CBF, da organização da CBF para as federações, e fazer o futebol feminino se desenvolver no país. Iniciar do zero.

O marketing lá da CBF também podia melhorar muitíssimo a visibilidade da seleção e da modalidade no país. Enfim, tem muito que pode ser feito, mas é preciso que os homens, já que estão a frente de tudo, queiram. E eu não sei se é o que eles querem.

Fonte: Brasil de Fato
Créditos: Brasil de Fato