Está aí, tudo junto, interligado, agrupado. Alguém já disse que se você quiser conhecer uma pessoa de verdade, é só dar poder a ela. Poder é parte do que os brasileiros quando saem do Brasil acham que têm. Alguns dólares e euros a mais na carteira, uma centena de curtidas no Instagram, cinco títulos mundiais, o privilégio travestido de mérito por estar na torcida da Copa do Mundo e “boom!”: o céu é o limite do machismo, homofobia e racismo. Mas não se engane, isso é o que somos no dia a dia.
Não fosse assim, o Brasil não estaria no topo dos casos de agressão à mulher e feminicídio, não seríamos os maiores assassinos da população LGBTQI+ e teríamos negros viajando para a Rússia.
Não fosse assim, cinco homens brancos não se reuniriam ao redor de uma mulher que não fala português, ligariam uma câmera e cantariam alegremente “buceta rosa”!
Como escreveu Beatriz Mota em seu artigo aqui no GLOBO, “estamos certos que é constrangedor ler e ouvir este palavrão. Mas há o que incomoda bem mais, como os dados que seguem: no Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas; uma mulher é estuprada a cada onze minutos; mais de cinco mulheres são violentadas por hora; e cerca de 70% das vítimas de abuso são crianças e adolescentes. Sim, aqui é todo dia um 7 x 1 para a cultura do estupro”.
Não é engraçado, não é brincadeira, mas é comum. A gente cansa de repetir que o machismo, o racismo, a homofobia estão ao nosso lado. Não é feita por um monstro, alguém sem escrúpulos, um psicopata, sem amigos, sem família, sem emprego, que não ocupa cargos públicos como um tenente da PM ou um ex-secretário de cultura, que não tem dinheiro pra assistir a Copa do Mundo de Futebol na Rússia.
Uma pesquisa do Ipea em 2014 revelou que 42,7% dos brasileiros acreditavam que mulheres de roupa curta mereciam ser estupradas e 35,3% concordaram totalmente que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Eu quero mesmo crer que, de 2014 a 2018, por conta das iniciativas femininas e feministas, esse número diminuiu, mas para a mulher de quem não se sabe ainda a nacionalidade não cabe nem mesmo a “desculpa” das roupas curtas ou do comportamento.
Mas já que está tudo aí, junto, interligado e agrupado, dá ainda para ir mais fundo na construção da sociedade brasileira, afinal, a indignação rápida ao conteúdo do vídeo me parece querer dizer que o que escrevi até agora todo mundo já sabe. Certo? Mas é que no meu caso, ser mulher e ser negra estão juntos, agrupados e interligados. Não daria portanto, para separar a “rosinha”.
As prateleiras das farmácias e sexshops estão repletas de perfumes, desodorantes, sabonetes, lenços umedecidos, gel, maquiagem. Sem contar na maior quantidade de formas de depilação possíveis. Tudo para que a gente ache que tem e terá sempre algo errado no nosso corpo, no nosso cheiro, no nosso gosto, nossa cor. A meta é ser magra, sem nenhum pelo, limpíssima, cheirosíssima e… rosa. Gastam-se dinheiros altos com clareamento das “partes íntimas”.
O padrão é branco, mesmo quando a gente fala de buceta. E de lá se estende para todo o resto do corpo.
Eu estava mesmo contando esses dias como Angola aumentou minha autoestima: aqui eu sou linda! Ao mesmo tempo, percebi que a minha lindeza tem a ver com o fato de que aqui eu não sou “tão negra”. O que me torna tão bonita é o que tenho de “branca”: meu nariz não é tão largo, meus olhos são puxados, meu cabelo, mesmo crespo, é grande e forma cachos. Em Angola sou quase uma rosinha.
O legado da colonização deixou nos países colonizados o subconsciente de que quanto mais parecido com o colonizador melhor, e isso é das coisas mais cruéis que se pode fazer com uma pessoa, com um povo. E isso permanece quando os homens, negros ou brancos, entendem que quanto mais “rosa” melhor.
Ou como escreveu a Isabela Reis, “isso é grave, porque não é só preferência pessoal, é um comportamento de toda uma população. Segundo o último CENSO (2010), 49% da população branca estava solteira. Contra 60% dos pretos e 61% dos pardos. Isso acontece porque os brancos se escolhem (74,5% dos brancos escolheram parceiras brancas e somente 20% pardas e 3% pretas), mas os pretos, não (39% dos homens pretos estão com mulheres pretas, 32% com pardas e 26% com brancas). Os números sintetizam a solidão da mulher negra”.
O racismo está também na idealização do corpo feminino: magro, o cabelo longo e liso, o nariz fino e a buceta rosa. Mas claro, na idealização do corpo feminino digno de se apresentar a sociedade, de postar foto e fazer declaração no Dia dos Namorados. Na cama e na cozinha ainda somos as preferidas. Uma mulher, negra, retinta, gorda e de cabelo 4c (tipo de fio de cabelo “mais” crespo) é uma mulher fadada a solidão.
Está tudo junto, interligado, agrupado, não basta mesmo não ser machista, é preciso ser antimachismo. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracismo.
Fonte: O Globo
Créditos: O Globo