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Sistema da Justiça viola sigilo e expõe crianças vítimas de estupro

Nomes e detalhes dos crimes estão em plataforma que reúne ordens de prisão

O Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), base de dados criada pelo Conselho Nacional de Justiça, expõe para consulta pública informações sigilosas de processos que tramitam em segredo de Justiça.

Nos mandados do Rio Grande do Sul, aparecem nomes completos e descrição minuciosa do estupro de uma criança de cinco anos, cometido pelo padrasto. Mãe e filho, ambos vítimas, são identificados.

O Espírito Santo também revela identidade e detalhes do abuso sexual de uma garota de 11 anos, cometido por um tio. O crime, segundo informações do BNMP, foi testemunhado pela irmã da vítima, também menor de idade e também nominada.

São Paulo identificava uma vítima de abuso sexual de oito anos. Procurado pela Folha, o Tribunal de Justiça disse que iria excluir o mandado da base de dados e iniciar um estudo para prevenir situações como a identificada.

Falhas semelhantes foram encontradas em Acre, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco e Santa Catarina.

Essas exposições contrariam resolução de 2016, na qual o próprio CNJ determina que os tribunais do país devem restringir a identificação de vítimas apenas às iniciais de nome e sobrenome, principalmente em crimes sexuais contra vulneráveis. O conselho é responsável pela fiscalização e controle das atividades do Judiciário.

O BNMP reúne todos os mandados de prisão do país e é atualizado diariamente. Para fazer a análise, a Folha baixou todo o conteúdo de 7 de março. Nele havia 576 mil ordens de prisão (ou de evolução de pena), com tempo de condenação, idade do suspeito, profissão e data do delito, entre outras informações. ​

A versão tem falhas: falta uniformidade às informações, que são desatualizadas, incompletas e preenchidas de modo errático. A julgar pelas respostas enviadas pelos estados, falta uniformizar inclusive procedimentos que afetam a segurança dos envolvidos, como a exposição de vulneráveis. ​

A reportagem analisou cerca de 800 mandados de prisão de processos que geralmente correm sob sigilo, relacionados a crimes de violência sexual ou que envolviam menores de idade. Um em cada quatro tramitava em segredo de justiça nos tribunais estaduais, mas estava explícito no BNMP. Eram públicos endereço, número dos documentos, filiação e, em alguns casos, telefone de réu, testemunha e vítima.

“O que existe aí é erro de alimentação”, afirma Rogério José Bento Soares do Nascimento, ex-conselheiro do CNJ e procurador do Ministério Público Federal. “Os tribunais alimentaram o banco de forma automática ou sem conhecer os níveis de acesso, copiando e colando a decisão, o que traz prejuízos para as pessoas e gera distorções graves.”

Segundo o procurador, se feita com intenção, a exposição de processos sigilosos pode ser crime, com base no Código de Processo Penal.

Desde 2017, a Lei 13.431 estabelece uma série de garantias a crianças e adolescentes vítimas de crimes, incluindo proteção da intimidade e de informações pessoais. Ainda que seja uma falha no sistema, as vítimas podem ingressar com ação de reparação de danos contra o estado.

A controvérsia em torno da criação de um banco único nacional está na discussão sobre que dados podem ser tornados públicos. “Ninguém precisa saber que tal pessoa foi vítima [de estupro]”, afirma Alberto Toron, professor de direito penal da Faap.

“Além de entrar com ação para pedir a retirada dos dados do domínio público, os atingidos podem processar o estado por danos morais.” Para ele, ainda que a ordem de prisão seja pública, o motivo pelo qual ela foi determinada deveria continuar em sigilo.

Nem sempre um réu alvo de mandado de prisão está condenado em todas as instâncias. Tanto é que cerca de 70% dos mandados são de prisão preventiva ou temporária.

Bruno Paes Manso, doutor em ciência política e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, avalia que a base sinaliza um progresso no Judiciário, poder em que a cultura de dar transparência a documentos ainda é restrita. Ele identifica, porém, falta de cuidado com as informações.

Já a advogada Alice Quintela, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, defende que as informações pessoais deveriam ser acessadas apenas por agentes públicos.

“Ele pode estar foragido e não ser encontrado no endereço, mas talvez a família ainda viva lá. Como fica a segurança dos parentes contra uma eventual vingança? É grave que esse banco fique aberto ao público.”

Partindo das informações disponíveis no BNMP, a reportagem telefonou para um apenado que ali consta como foragido. O réu, um montador de estruturas metálicas de 47 anos, contou que já ficou detido por cinco meses em 2015 acusado de tentativa de abuso sexual da enteada, mas que sua situação na Justiça já estava sido resolvida —embora não soubesse dizer como.

Sua advogada de então confirma a prisão, mas não acompanha mais o caso desde que se aposentou, em 2015.

O Tribunal de Justiça de Alagoas afirma que o caso já transitou em julgado, ou seja, não cabem mais recursos, mas não informou qual era a situação penal do réu, se a de foragido ou se já havia cumprido pena. No BNMP, aparecia como mandado pendente.

O CNJ estimula a transparência dos processos, prevista pela Constituição, mas determina que casos em segredo de Justiça devem ser avaliados com critérios específicos.

Em processos públicos, os órgãos do Judiciário devem informar o que o conselho estabelece como dados básicos: número do processo, classe e assunto; nome das partes e de seus advogados; andamento e o inteiro teor das decisões.

Quanto aos casos sigilosos, os Tribunais de Justiça divergem em relação aos procedimentos que consideram adequados. Há os que dizem que a entrada do mandado na base é automática, como o de SP. Outros, que processos sob segredo de Justiça devem permanecer sigilosos, como Bahia, Goiás, Pará e Pernambuco.

E há quem acompanhe a tese do CNJ, de que a decisão cabe ao magistrado responsável —caso de Paraná, Paraíba, Ceará e Espírito Santo.

O juiz Fabio Ribeiro Porto, que coordena a integração do TJ do Rio ao BNMP, afirma que todo processo sigiloso tem tratamento especial. Alguns mandados (como contra grandes traficantes) ficam sob sigilo até a prisão. “Pode haver agentes que maliciosamente buscam informações na rede mundial de computadores e fujam.”

ENTENDA O BNMP

O que é o Banco Nacional de Mandados de Prisão?
Uma base de dados de todos os mandados de prisão expedidos no país, com atualização diária. Sua versão pública, que pode ser consultada no site cnj.jus.br/bnmp ou pelo aplicativo Sinesp Cidadão, deveria trazer apenas os mandados não cumpridos e que não estão sob sigilo.

Quando foi criado?
Em 2011, a partir de uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão que gere o banco. Quem alimenta os dados são os tribunais de Justiça dos estados.

Para que ele serve?
Ele agrega mandados de todo o país numa única base, permitindo que alguém foragido de um estado possa ser preso em outro —se um foragido da Justiça de Pernambuco for parado em blitz em São Paulo, por exemplo, o policial pode consultar o BNMP e fazer a prisão.

Quais os problemas?
– A base expõe processos sigilosos, com identificação de vítimas, inclusive menores de idade, e detalhes
de estupros

– O preenchimento tem erros, omissões e duplicações (um mesmo mandado aparece 30 vezes)

– O banco é desatualizado. Os tribunais têm até 24 horas para registrar quando um mandado é expedido, cumprido ou extinto, mas esse prazo não é respeitado. Por isso, mandados sem validade aparecem como pendentes

O que o CNJ diz sobre a violação de dados sigilosos?
Que “a responsabilidade pela atualização das informações do BNMP, assim como pelo conteúdo disponibilizado, é exclusivamente dos tribunais e das autoridades judiciárias responsáveis pela expedição dos mandados de prisão”.

O que o CNJ diz sobre os outros pontos?
Que os equívocos são pontuais e derivam de problemas de operação dos TJs. Afirma ainda que na nova versão da base, em andamento, esses problemas devem ser resolvidos.

Quais serão as diferenças entre as duas versões?
Além de um cadastro com dados de todos os presos no Brasil, o BNMP 2.0 passará a se chamar Banco Nacional de Monitoramento de Prisões e vai agregar alvarás de soltura e o status do preso (provisório ou condenado). O juiz responsável pelo caso será notificado a cada movimentação.

Quando a nova versão ficará pronta?
O prazo para que todos os estados entreguem os dados é 30 de maio. SE, RR e GO já finalizaram os cadastros, MG, RJ e RS ainda não começaram e SP, que tem o maior número de presos e processos, concluiu 18% da etapa. Os TJs consultados informaram que pretendem finalizar tudo até a data estipulada.

O que dificulta a tarefa?
Segundo 17 TJs que responderam à reportagem, há demora na consolidação dos dados (que nem sempre são digitais) e divergências no número de presos. Alguns estados também reclamam da lentidão e instabilidade do sistema de cadastro.

O que o CNJ diz?
Que o treinamento intensivo dos servidores nos tribunais e a comunicação automática de alguns sistemas dos TJs com o BNMP 2.0 (o dado lançado em um entra simultaneamente no outro) devem combater erros.

Fonte: UOL
Créditos: Gabriela Sá Pessoa, Álvaro Fagundes, Débora Sogur e Judite Cypreste