Quarta agremiação a atravessar a Sapucaí, a Paraíso de Tuiuti fez história no Carnaval do Rio. Não por investir no tom político, temperado com críticas sociais –, batida esta tão louvável quanto essencial, embora mais surrada do que abadá de folião na quarta-feira de cinzas. Mas, sim, por inaugurar a indignação seletiva, a flexibilidade ética e o contorcionismo retórico ao desenvolver seu enredo na avenida. Foi, de fato, histórico. Raras vezes o cinismo e a capacidade de adulterar os fatos desfilaram tão lépidos e faceiros no berço do samba. Não impressiona. A propósito, não vai aqui nenhum libelo autoritário. No quesito liberdade, estou e sempre estarei ao lado de Hannah Arendt, Ayn Rand e Rosa Luxemburgo, para quem ela (a liberdade) “é, apenas e exclusivamente, a dos que pensam de maneira diferente”. Agora, face ao clássico questionamento do sambista, igualmente Rosa (o Noel), “com que roupa eu vou?”, a Tuiuti sairia-se de maneira mais digna, espinha ereta, se tivesse escolhido um figurino menos hipócrita.
Atemo-nos aos dois “pontos altos” da passagem da escola: a chamada ala de “manifestoches”, integrada por passistas caracterizados de verde e amarelo como se fossem marionetes, numa alusão aos manifestantes a favor do impeachment de Dilma, e o carro alegórico que ombreava a recente modernização da legislação trabalhista ao trabalho escravo – destaque para a representação de um vampiro “neoliberalista” (sic) com uma faixa presidencial cruzando-lhe o peito, numa referência a Michel Temer. Bem, como se já não bastasse o desrespeito a milhões de brasileiros que legitimamente ocuparam as ruas para protestar contra o governo do PT, caso houvesse a preocupação com a fidelidade aos fatos, a ala “manifestoches” jamais poderia escolher ideologia. Pois somente a enviesada opção pela revolta seletiva faria com que uma escola descartasse os mortadelas, aqueles manifestantes que, a soldo, foram instados a criar o esdrúxulo, embora minoritário, “protesto a favor” das gestões petistas. Bingo! Foi o que a Tuiuti fez. Para a escola, se os fatos prejudicam as narrativas, pior para os fatos.
Se ainda restava alguma dúvida sobre o viés ideológico da agremiação, o carnavalesco Jack Vasconcelos fez questão de imprimir cores definitivas à realidade que já gritava. Declarando-se admirador de outra Rosa – não a Luxemburgo, mas a Magalhães, da Imperatriz – e provavelmente sem entender bulhufas do outro Rosa (o Noel), Jack disse sem corar a face que o ímpeto questionador e o afloramento do espírito crítico da Paraíso de Tuiuti têm a ver, repare só, “com a troca de governo”. Antes, sob as administrações do PT, justificou o carnavalesco, a escola era “parceira do poder” e “não podia arranhar a relação”. Segue o baile: “Enredos mais críticos não eram incentivados”. Ah, tá …
A cereja do bolo guarda relação com os petardos lançados contra a recém-aprovada Reforma Trabalhista. Pois não é que a Paraíso de Tuiuti, em 2017, contabilizava apenas três trabalhadores regidos pela CLT e, em 2018, não empregou ninguém com carteira assinada? Ou seja, a escola pratica com impressionante desenvoltura aquele provérbio transformado em lei maior em nosso País, ao qual caberia apenas uma pequena adaptação: em terra de Tuiuti, cada um cuida de si. É como a marchinha de Carnaval: “quem sabe, sabe, conhece bem”. Que o diga Raphaella Pontes, filha da jornalista Liza Carioca, morta ano passado após ser atropelada pelo carro abre-alas da Paraíso de Tuiuti. Enfim, deu Beija-Flor.
Fonte: Redação
Créditos: Istoé