Thina Rodrigues, 56, já sofreu todo tipo de preconceito por ser travesti e chegou a ser presa e perseguida pela polícia, antes de se tornar militante. Hoje ela é presidente da ATRAC (Associação de Travestis do Ceará) e organiza um curso de capacitação para policiais, com o objetivo de evitar que episódios tristes do seu passado se repitam.
“Ser travesti não é fácil. Com 17 anos, fui expulsa de casa pela minha família, no interior do Ceará, por ser afeminada. Vim para Fortaleza. Com 18, 19 anos, comecei a tomar hormônios e a fazer shows em boates. O medo passou a ser parte da minha vida.”
Fomos presas em uma “limpeza” da cidade
O centro era a região das travestis, mas não podíamos andar pelas ruas durante o dia. Só à noite, e sempre com medo de que a polícia aparecesse. Eram comuns histórias de meninas que eram levadas em uma noite e apareciam, no dia seguinte, mortas em algum lugar afastado.
Em 1988, o governo começou uma “limpeza” no centro da cidade. O motivo era que as famílias tradicionais não frequentavam mais a região. Era como se nós, as travestis, fôssemos a sujeira.
Existia um toque de recolher. Às 22h, a gente tinha de sair das ruas, dos bares. Mas uma noite, antes desse horário, resolveram fazer a limpeza. A polícia apareceu por lá, um batalhão, com escopeta e metralhadora, e foi pegando todas as meninas.
Colocaram a gente em fila indiana e levaram umas 60 travestis para a delegacia. Levamos tapa, empurrão e fomos muito ofendidas. Mas, por sorte, a porta da delegacia estava cheia de jornalistas. Eles cobraram e pressionaram para saber o motivo da prisão e, como não tinha, fomos soltas no dia seguinte.
Vivia com medo e me escondendo
Procurei um jornal e denunciei a prisão. Dei o nome de Raquel para a reportagem e uma foto minha foi publicada. A polícia, então, começou a aparecer nas boates procurando pela Raquel.
Passei três meses sendo perseguida. Lembro que morava em uma pensão e vivia em pânico de ser presa. Mal saía de casa. Quando estava na rua, não podia ver um policial ou ouvir uma sirene que me escondia. Não queria ser uma dessas meninas que o corpo aparecia no dia seguinte.
Por causa disso, umas amigas me orientaram a deixar de ser dançarina e virar garota de programa, porque eu poderia atender de casa, sem me expor. E foi o que fiz, depois de colocar um anúncio no jornal.
Comecei a lutar contra a injustiça
A prostituição foi minha profissão até cinco anos atrás. Mas, em 1989, algo novo aconteceu e mudou minha vida: um órgão de resistência da cidade me convidou para participar das reuniões e eu me tornei militante.
Aprendi muito e virei multiplicadora de informações, passando a informar outras travestis sobre direitos, segurança e saúde. Também comecei a frequentar eventos fora do Estado e a conhecer outras travestis que lutavam contra as injustiças que cercavam nossas vidas.
Por mais de dez anos, segui militando dentro de grupos de direitos humanos ou pessoas homossexuais. Até que em 2000, conheci uma travesti advogada e decidimos que era hora de parar de deixar os outros lutarem por nós e sermos protagonistas da nossa própria situação. Fundamos a Associação de Travestis do Ceará.
Vi muitas irmãs sofrerem violência
Apesar do meu trabalho social, ainda exerci a prostituição porque não existiam outras chances de trabalho para uma travesti. Mas tinha medo de ir para a rua, medo de ser presa outra vez.
Nunca passei por outra violência, mas ouvi muitas ofensas e vi muitas e muitas irmãs sofrerem abordagens violentas, serem agredidas e morrerem pelas ruas. Para nós, as negras, o medo sempre foi ainda maior.
Por isso, com a Associação, começamos a organizar palestras e oficinas para nos fortalecermos. Falamos de nome social, de sexo seguro, de drogas e até do risco do silicone industrial. Tentamos também conseguir parcerias para cursos, para que algumas possam seguir outros caminhos.
Já capacitei mais de 3.000 policiais
Além disso, estamos sempre fazendo denúncias de violência e maus tratos, pressionando o governo por melhores condições.
Foi fazendo esse trabalho que conheci uma secretária da Coordenadoria de Diversidade Sexual da prefeitura de Fortaleza e, há cinco anos, fui convidada para trabalhar como educadora social, uma oportunidade rara para uma travesti.
Isso me aproximou do governo e, no ano passado, tivemos a oportunidade de montar pela ATRAC um curso de capacitação para policiais, para que eles aprendam a lidar com a diversidade de gênero. Já treinei dois grupos, um de 1.700 e outro de 1.500 oficiais, ensinando a forma correta de chamar cada identidade de gênero, mostrando quais atitudes são preconceituosas e contando um pouco da minha vida, para que entendam que as travesti não são monstros.
Claro que sempre tem uma ou outra pessoa no grupo que não ouve, que questiona e não tem empatia. Mas, de maneira geral, tem sido muito positivo. Nas ruas, as meninas já sentem a diferença: os policiais não mexem mais com elas, perguntam se está tudo bem, abordam com respeito.
Muito ainda precisa mudar, mas vejo que a sociedade está evoluindo. Antes eu não podia andar na rua e ter conta no banco, já fico feliz de ver que a gente está conquistando cada vez mais respeito.”
Fonte: UOL
Créditos: UOL