Por Ricardo Melo
Foi preciso um ator de renome, num momento de rara altivez nos dias de hoje, para que o drama brasileiro viesse a público sem disfarces. Convidado para um programa na TV Brasil, da Empresa Brasil de Comunicação, Pedro Cardoso rasgou o verbo literalmente. A empresa está em greve, e ele não fora avisado. Ao vivo, disse desconhecer a fundo as reivindicações dos funcionários, mas soube que o movimento era contra um governo golpista, o que, para ele, já dizia o suficiente.
Pior ainda: por aqueles dias, o interventor nomeado para dirigir a EBC, Laerte Rímoli, divertia-se reproduzindo memes infames de cunho racista contra a atriz Taís Araújo. Cardoso reagiu como a maioria do povo brasileiro gostaria de reagir, mas não consegue ou por descrença ou por falta de quem lhe ofereça alternativas viáveis para derrubar a quadrilha que assaltou o Planalto. Aposta-se tudo no pleito de 2018, que ninguém pode assegurar que vá ocorrer como eleições de verdade, se é que urnas serão abertas.
O que vem ocorrendo na EBC desde o golpe é um microcosmo do ambiente predominante desde a queda da presidente eleita Dilma Rousseff. Vale rememorar as semelhanças. Logo após o afastamento inicial de Dilma, a primeira medida do governo Temer foi investir contra a empresa de comunicação pública. O que mais desgostava os golpistas é que a empresa se mostrava na prática, num universo asfixiado pela mídia sob encomenda, numa ilha de liberdade, apartidarismo, pluralidade e diversidade –exatamente como havia sido proposto pelo seu documento de fundação em 2007/2008.
Durante a batalha do impeachment, de forma inédita vozes como os sem teto, sem terra, blogueiros, movimentos estudantis, feministas, oposicionistas tiveram espaço para se expressar fora de redes sociais e manifestos restritos a grupos específicos. Sem que, em nenhum momento, as portas da empresa fossem fechadas aos que defendiam o impeachment. Estes sempre tiveram assento garantido, quando quiseram, nas mesas de debate e programas de opinião nos diferentes veículos de comunicação da emissora: televisão, rádio, agência de notícias, portal. Foi um momento histórico na vida da EBC.
Tão histórico quanto insuportável para a camarilha de ladrões de votos e de dinheiro público. Fingindo civilidade, o ministro Eliseu “quadrilha” “fodão” Padilha chegou a oferecer ao presidente da EBC, Ricardo Melo, uma saída “honrosa”, com o mesmo aroma fétido exalado por todas as iniciativas desta gente. A proposta: que Ricardo Melo se afastasse em troca de algum cargo na diretoria da emissora ou mesmo no governo.
Qual não foi o susto de “quadrilha fodão” quando recebeu a negativa. Ricardo Melo havia sido indicado para um mandato de quatro anos recém-iniciado e tinha compromissos, todos estabelecidos no estatuto da EBC, com a defesa da comunicação pública. Sua saída do mandato seria uma traição a estes compromissos, firmados em sua posse ainda durante o governo da presidenta eleita.
Os golpistas registraram o fato, não sem antes demonstrar sua ojeriza ao descobrir que nem todos estão à venda em troca de empregos garantidos custeados pelo suado dinheiro do povo brasileiro. O ódio da máfia do Planalto só fez crescer. Diante da recusa, temer assinou por conta própria o afastamento do presidente da EBC e nomeou Laerte Rímoli como títere na empresa. Este “tomou posse” numa cerimônia clandestina e começou a distribuir canetadas contra quem não jurasse fidelidade à quartelada parlamentar. Voltaremos a Rímoli um pouquinho abaixo.
Como naquele tempo ainda se pensava haver algum resquício de justiça no Brasil, o presidente legítimo da EBC foi ao Supremo com a ajuda do advogado Marco Aurélio Carvalho e de colegas da diretoria afastada arbitrariamente.
O ministro Dias Toffoli, encarregado do processo, deu razão a Ricardo Melo e o manteve no cargo. Seguiu-se então um período de resistência aos planos de desmontar de vez a primeira iniciativa de construir no Brasil uma rede de comunicação pública, como existe em diversos países do mundo onde vigoram democracias mesmo incipientes.
Para deixar claro que a defesa dos compromissos originais estava de pé, uma das primeiras medidas de Ricardo Melo foi levar ao ar uma entrevista da presidenta eleita Dilma Rousseff já afastada pelo Senado, mas ainda não golpeada de forma definitiva, realizada pelo jornalista Luis Nassif. O ódio dos golpistas, então, transformou-se em caça aberta, sem tréguas ou dignidade de instrumentos. Em reuniões, os representantes de temer propunham abertamente o fechamento da empresa. A torneira de recursos, já escassos, foi praticamente cerrada. Mas a resistência prosseguia.
Os golpistas então lançaram mão de seu arsenal conhecido de truculências. O elo mais frágil, no caso, situava-se justamente no judiciário. Toffoli era contra o afastamento? Então trata-se de incinerá-lo. Poucos dias depois, a revista Veja estampou em sua capa a figura do ministro acusando o escritório da mulher dele de negócios escusos.
Em seguida, temer baixou mais uma medida provisória afastando de novo o presidente Ricardo Melo, dissolvendo o conselho curador –encarregado de zelar pelos princípios de fundação da EBC—e transformando as nomeações da diretoria em assunto exclusivo do Planalto, com direito a demissão sumária, trocas ininterruptas e alinhamento automático com os golpistas.
Após a capa de Veja, Toffoli roeu a corda rapidinho. Os motivos têm que ser perguntados a ele. O fato é que tudo aquilo que o ministro meses antes considerava aberração, inconstitucional e fruto do arbítrio transformou-se em direito “legítimo” de temer e seus bandoleiros. Alguma semelhança entre esta atitude e a de agora, quando Toffoli pediu vistas providenciais no processo de foro privilegiado, e isso poucos dias depois de uma visitinha a temer no jaburu sem qualquer motivo aparente? A resposta vai de cada um.
Aqui voltamos a Rímoli. O cidadão sempre teve fama de ecumênico e amigo do peito de todos os chamados “coleguinhas”. Promovia festas em Pirenópolis, nas cercanias de Brasília, onde não faltavam fantasias carnavalescas, performances esquisitas, bebida farta e um ambiente em que a falsidade dos sorrisos traía a vontade de chamuscar tais amigos à primeira oportunidade.
O amigo dos amigos, a esta altura, já havia abandonado há tempos qualquer atração por jornalismo sério ou honrado. Depois de pular de galho em galho por campanhas políticas tucanas e assessorias de políticos encrencados, seu último cargo antes de virar interventor era o de homem forte de comunicação da câmara sob comando de… Eduardo Cunha!
Fonte: Diário do Centro do Mundo
Créditos: Diário do Centro do Mundo