A luta do século

Rubens Nóbrega

Adenilson Maia, o Professor União, não é apenas essa fi gura de proa da chamada crônica esportiva paraibana nem se notabilizou no esporte tão somente por ter sido excepcional goleiro de futebol e árbitro de handebol de cancha internacional.

União também se arriscou e logrou algum sucesso no showbiz do meio, promovendo eventos para interar a feira e ganhar uns trocados a mais que lhe permitissem trocar o carro, por exemplo, ou fazer aquela viagem de férias prometida à mulher e às crianças, mas quase sempre adiada por falta de grana.

Desse universo paralelo, o Professor União guarda e conta boas histórias, algumas engraçadas, outras nem tanto, umas poucas que marcaram profundamente pelos momentos de muita tensão ou compensação que ao fi nal lhe proporcionaram.

Dentre as histórias que ouvi e mais gostei destaco aquela em que ele e um sócio montaram e realizaram no ginásio do saudoso Clube Astrea a ‘luta do século’ entre dois dos melhores pesos médios do boxe brasileiro na segunda metade dos oitenta.

Do lado de cá do ringue, o nosso Moicano, jabeador de primeira, mas sem perspectivas de estrelato, inclusive porque fora treinado e escolado na lida de ofi cinas do Distrito Mecânico e nas brigas de rua no Cordão Encarnado.

Do outro lado, “diretamente do Rio de Janeiro”, como anunciavam os locutores da época, o até então invicto Messias, terceiro no ranking nacional, que veio à Paraíba também ganhar bom dinheiro e fruir as regalias que pediu e os promotores lhe deram.

Naquele período, o cara estava pronto para fazer carreira mundial e disputar os principais títulos de sua categoria, mas a vinda a João Pessoa para enfrentar e vencer um oponente praticamente desconhecido deu outro rumo à vida de Messias.

Depois daquele glorioso embate, Messias apaixonou-se por nossa cidade e, dizem, por uma de suas formosas moradoras. Nunca mais voltou pro Rio. Aqui constituiu família e aqui instalou uma concorrida academia de boxe e malhação.

Mas o lance mais interessante dessa luta aconteceu antes de soar o gongo, fora do ringue. Foram instantes de muita tensão e desfecho imprevisível, por conta de a temida gangue da Beira da Linha ter ameaçado roubar a renda.

Liderada por Catemba, todo o povo da cidade sabia que o facínora não se limitava a boatos e ameaças. Quando anunciava a intenção de fazer o mal, todos davam como certo que algo
muito ruim terminaria acontecendo a alguém.

Podia ser um ataque à padaria ou à bodega da esquina, um arrastão na Festa das Neves, um assalto à residência do comerciante mais próspero do bairro ou uma sopa de tamancos (pau puro) em um rival.

Sabendo do perigo que rondava a renda e, mais ainda, da fama e da qualidade daquele bandido, União tremeu nas bases. “Feito goleiro na hora do gol”, acrescentaria o poeta Belchior.

Afinal, pela divulgação que fi zera do show, pela excitação nos bastidores, pelos comentários por toda a cidade, pela grande e fundada expectativa de casa cheia, enfi m, aquilo era coisa pra ele e o sócio tirarem o pé da lama por um bom tempo.

Mas, além da possibilidade de perda total, o dano irreparável também era dado como certo. Motivo: reza a lenda que a Polícia de então também tremia diante de Catemba e seus comparsas.

Mas Deus estava vendo a precisão do nosso amigo. Mandou- lhe um estalo. União lembrou o tempo em que treinava o time de futebol de campo do Presídio do Roger. Lembrou especialmente de Ferreirão, o mais forte e mais alto zagueiro da mais entrosada equipe de todo o sistema penitenciário estadual.

Ferreirão, condenado por homicídios dentro e fora do cárcere, impunha respeito e temor à sua pessoa dentro e fora da prisão. E foi dele que União se valeu para comandar a segurança da bilheteria. Mediante autorização especial da diretoria do presídio, o apenado foi liberado para sair e trabalhar sob a guarda do seu ex-treinador.

Depois de tomar conhecimento do trabalho e dos temores de União, ao entrar no carro para ser levado ao Astrea o próprio Ferreirão sugeriu que antes eles parassem em dois ou três botecos de Mandacaru, Roger e Tambiá para mostrar quem estava na área e o que ele faria em algumas horas de liberdade.

O submundo ferveu de ansiedade naquele dia. Para a bandidagem, Moicano X Messias não passaria de uma aguada preliminar, não mais que um esquenta de luxo da luta principal, que se daria fatalmente (até de modo literal) entre Ferreirão e Catemba.

Tudo pronto para início da venda de ingressos às imensas filas que se formavam desde cedo nas calçadas externas do ginásio do Astrea, o público só começou a ser atendido após a chegada de Ferreirão e três auxiliares que ele recrutou a caminho.

Assumindo seu posto, o presidiário postou-se bem na frente da bateria de guichês. De pé, cara fechada, olhos bem abertos e braços bem cruzados. Ficou assim até o encerramento da vendagem, quando esgotou a lotação, fecharam-se os portões e ele foi acompanhar a contagem do dinheiro, lá dentro, ao lado do Professor União.

Não deu meia hora, um dos homens de Ferreirão chegou esbaforido à sala do borderô para comunicar a presença de “uns sujeitos em atitude suspeita” lá fora. Pela janelinha de um dos guichês, União conferiu as fi guras e identifi cou Catemba à frente.

Ferreirão saiu de imediato e foi recepcionar os visitantes. União junto. Quer dizer, um pouco atrás. E na calçada viu seu segurança dirigiu-se diretamente ao chefe do grupo, a quem olhou fixamente nos olhos, ignorando os demais:

– Tá querendo alguma coisa, cidadão? – perguntou Ferreirão a Catemba, que fi cou visivelmente surpreso e nervoso ao reconhecer quem o estava abordando. Surpresa maior veio na
sua resposta e o tom com que reagiu à abordagem.

– Quero nada não, Seu Ferreira. Só vim ver se o senhor tá precisando de ajuda… – disse o meliante, sob testemunho e o riso que União segurou não sabe até hoje como.