Agressão

Judith Butler é agredida por manifestantes antes de ir embora do Brasil

Segundo relatos de testemunhas, a escritora estava na área de check-in do Aeroporto de Congonhas, à espera de embarcar para o Rio de Janeiro, quando foi perseguida por uma mulher que segurava um cartaz com uma foto sua desfigurada e gritava repetidos xingamentos.

Depois de uma semana agitada em São Paulo, a filósofa americana Judith Butler, de 61 anos, provavelmente só queria ter uma despedida da cidade em paz. Mas ela não teve sossego. Segundo relatos de testemunhas, a escritora estava na área de check-in do Aeroporto de Congonhas, à espera de embarcar para o Rio de Janeiro, quando foi perseguida por uma mulher que segurava um cartaz com uma foto sua desfigurada e gritava repetidos xingamentos. Além de sofrer a agressão verbal, Judith também foi empurrada com o cartaz, feito de madeira e cartolina.

Judith estava em São Paulo desde a quarta-feira(06). Ela lançou um livro na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mediou, de terça a quinta-feira, alguns painéis em um seminário sobre democracia no Sesc Pompeia. No entanto, outra vertente de seu trabalho, uma que nem sequer foi abordada nos eventos, gerou comoção nas redes sociais. Judith é uma das principais estudiosas sobre a questão contemporânea do feminismo e a teoria queer (que afirma que a orientação sexual e a identidade de gênero dos indivíduos são resultado de uma construção social).

Desde 26 de outubro, uma petição, hospedada no site CitizenGo, vinha reunindo nomes (368.699, para sermos exatos) num abaixo-assinado contra a vinda de Judith. A petição afirma que a filósofa propõe a destruição da identidade humana por meio da desconstrução da sexualidade. “Segundo ela [Judith], ‘homem e masculino podem facilmente significar tanto um corpo feminino como um corpo masculino, e mulher e feminino podem significar tanto um corpo masculino como um corpo feminino’. Porém, ela não se satisfaz em constatar isso. Por meio daquilo que chama de performance, propõe que as pessoas vivenciem todo tipo de experiência sexual.”

Performance é como Judith explica os padrões de masculino e feminino aceitos na sociedade. Usando o exemplo dos transexuais e travestis, que “interpretam” o gênero oposto por meio de comportamentos e estéticas consideradas inerentes a eles, a filósofa questiona se o padrão considerado feminino (cabelos longos, boca pintada e salto alto, por exemplo) e o masculino (cabelos curtos, sapatos baixos e calças) não são um costume aprofundado ao longo dos anos, “performado” por cada indivíduo. Judith discorreu sobre o assunto no livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, publicado em 1990, pelo qual se tornou famosa no meio acadêmico e entre as feministas.

Essas ideias, assim como algumas exibições culturais sobre as diferentes sexualidades (a exposição Queermuseum em Porto Alegre, a peça O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu em diversas cidades brasileiras, a performance nu interativa de Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo), vêm despertando a ira de grupos organizados pelas redes sociais. Em oposição a essas exposições, esses grupos têm impetrado ações judiciais com o objetivo de conseguir o cancelamento desses eventos. No caso de Judith, além do abaixo-assinado, a página do Sesc no Facebook virou alvo de uma enxurrada de críticas.

Por receio de ataques à filósofa, durante o lançamento do livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (Ed. Boitempo, 240 páginas, R$ 68), na segunda-feira, Judith foi acompanhada por dois seguranças da Polícia Federal, colocados à disposição pelo procurador regional da República Marlon Alberto Weichert. Nada aconteceu. Mas o dia seguinte provou que a preocupação não era à toa.

Um grupo de manifestantes formado por jovens, adultos e senhores se aglomerou em frente ao Sesc Pompeia desde às 8h30. Eles esbravejavam palavras de ordem e recados irados, amplificados por uma caixa de som improvisada sobre um carro estacionado na calçada. “Para os comunistas, os fascistas, as feministas… Tenho um recado para vocês: a revolução familiar começou”, ouvia-se. Os manifestantes transformaram a figura da filósofa em uma boneca de bruxa feita de sacos de lixo, roupas velhas e um sutiã rosa. Sob o chapéu negro pontudo, foi colada uma imagem do rosto de Judith. “Menos bruxas e mais príncipes e princesas”, diziam alguns cartazes empunhados.

Quem se manifestou contra Judith se dizia a favor das crianças, que seriam facilmente influenciadas, de forma negativa, pelo que chamam de “ideologia de gênero”. “Eles querem mostrar às crianças que se não nasce nem homem, nem mulher, querem ir contra a biologia e contra Deus”, afirmou a chefe de cozinha Érica Ornellas, de 53 anos, uma das manifestantes em frente ao Sesc Pompeia. “Essa é uma teoria do mal que quer destruir a identidade do ser humano. Se eles fizerem isso, teremos uma sociedade detonada. Eu vou olhar para você e dizer ‘hoje eu acho que sou homem, hoje eu acho que sou uma jabuticaba’”, disse a hoteleira Celene Salomão de Carvalho, de 52. Ambas vestiam ao menos uma peça de roupa rosa. Os homens a seu redor, em sua maioria, usavam tons de azul.

Dentro do Sesc, o seminário teve início às 10 horas, afastado da balbúrdia e protegido pelas altas paredes de tijolo aparente. Judith falou por meros 30 minutos, acompanhada por Natalia Brizuela, sua colega da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Vladimir Safatle, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Não houve protestos por parte do público presente no teatro, que ouviu atentamente a discussão em torno dos desafios da democracia liberal e suas formas institucionais básicas. Finda sua participação, Judith alarmou-se ao descobrir que, do lado de fora, um surdo (instrumento de percussão) era martelado em um ritmo constante. Seu som embalava os manifestantes, que ateavam fogo à boneca de bruxa e a pisoteavam com violência, enquanto gritavam “Fora, Butler!”. A cena remetia a rituais da Inquisição. Após o episódio, Judith informou à assessoria do evento que não falaria mais com a imprensa.

Judith cresceu em Cleveland, Ohio. Seu pai era dentista e a família da mãe dona de cinemas. Na pré-adolescência, ao ser questionada sobre o emprego dos sonhos, respondeu que esperava ser filósofa ou palhaça – se levarmos em conta como o público se divide em odiá-a ou adorá-la, poderíamos dizer que ela conseguiu ambos. Desde muito cedo, ela se mostrou uma leitora ávida. Também não demorou para expor sua homossexualidade. Levou essa questão em conta ao escolher uma faculdade. Optou pela Bennington College, no estado de Vermont, porque sabia da existência lá de estudantes que eram “pelo menos minimamente bissexuais”. A família, apesar de não se sentir sempre confortável com sua sexualidade, acabou aceitando sua opção. Seu pai se mostrou feliz quando Judith voltou para casa com uma namorada judia.

Dois anos mais tarde, ela se transferiu para a Universidade Yale, onde terminou sua formação. Em ambas as instituições, participou ativamente de coletivos feministas, numa época que coincidiu com o surgimento de estudos voltados para a questão das mulheres nas disciplinas acadêmicas. Conquistou o título de doutora em filosofia com sua tese sobre o filósofo alemão Georg W.F. Hegel, que inspirou Karl Marx.

Ao longo da carreira, Judith colecionou tanto elogios, quanto críticas. Em 1998, a revista Philosophy and Literature lhe concedeu um prêmio de “escrita ruim” em prosa acadêmica. Até mesmo algumas feministas discordam dela. Em 1999, a filósofa Martha Nussbaum escreveu uma longa afronta a Judith para a revista The New Republic. Chamou-a de narcisista e a acusou de ignorar o sofrimento de mulheres famintas, analfabetas e que sofrem violência física e sexual, com condições diferentes das suas.

Ao mesmo tempo, conforme as discussões sobre homossexualidade e gênero começaram a ganhar espaço na imprensa, sua presença começou a ser requisitada fora da academia. Em 2015, esteve no Brasil para participar de outro seminário no Sesc, sobre a questão queer. A passagem foi pacífica e não gerou comoção popular. “O que temos hoje é o reflexo de uma quase criminalização do feminino em cada um de nós. As pessoas estão com medo que suas vidas sejam afetadas pelos outros”, diz Vinícius Santana, ator e drag queen, de 27 anos, que engrossava o caldo de manifestantes pró-Judith presentes à Rua Clélia, na terça-feira (7). “Sua teoria sobre como as pessoas têm o direito de performar o gênero e a sexualidade que quiserem e como isso não tem de representar ônus para ninguém me ajudou a compreender tudo sobre mim.”

Na tarde da quinta-feira (9), Judith voltou ao Sesc Pompeia para o encerramento do seminário. Não havia manifestantes presentes. “Na verdade, vou cancelar este painel e dar uma palestra sobre gênero”, brincou com a plateia, sem imaginar a agressão no dia seguinte. “Estão falando por aí sobre uma tal de ‘ideologia de gênero’ – que, aliás, criticam dizendo ser criação do diabo… Se você diz para uma menina que, se ela nasceu mulher, tem de continuar mulher. E que ela tem de ser heterossexual. E que, então, terá de se casar com um homem, ter filhos com ele e criar uma família também hétero… Isso, sim, é ‘ideologia de gênero’.” Dentro das paredes de tijolo aparente, reinava a calmaria. Mas, nas esquinas do país, continua a barulheira promovida por grupos organizados contra as discussões abertas sobre gênero, homossexualidade, identidade sexual e cultura.

Fonte: Época
Créditos: Nina Finco