Tanta coisa a comentar, sim, com sua devida urgência política, mas me obrigo a tratar da questão do MAM. Pode uma criança, de algum modo, interagir com um artista nu, goste você ou não da arte que ele faz? A resposta óbvia é “não”. Há aí um erro estúpido da curadoria. Não basta o aviso com a advertência.
O Estatuto da Criança e do Adolescente exerce uma tutela sobre o menor que relativiza o pátrio poder. E a esquerda costuma gostar disso, não é? Um menor de 14 anos está impedido de ajudar a família num trabalho autônomo ainda que frequente normalmente a escola e não seja maltratado. Rende uma acusação de “exploração de trabalho infantil”. E jamais ocorreria aos nossos vermelhos que há nisso uma exorbitância, certo? Não obstante, saem gritando por aí que a interação de uma menina de seis anos com um artista nu, não tendo havido nada de libidinoso, é assunto que só interessa à família.
Mas também pululam os direitistas hipócritas. Chegaram miasmas do vômito de alguns que não se constrangem em defender que o estado não pode impor às famílias que matriculem seus respectivos filhos em escolas regulares. Isso seria, dizem, uma interferência indevida do Estado. Esse pai pode privar as crianças do ensino formal — e nem entro no mérito se isso seria melhor ou pior —, mas não pode acompanhá-las a uma exposição em que há uma pessoa nua? Há gente cujo pensamento jamais se torna um sistema, que há de ser necessariamente complexo. Se formos resumir a sua visão de mundo, temos não mais do que uma coleção de escolhas arbitrárias, que não guardam nenhuma coerência.
Numa sociedade civilizada, é evidente que crianças não podem ficar sujeitas apenas ao arbítrio de suas respectivas famílias. Mas que isso também não seja pretexto para a, digamos, socialização do infante, de caráter fascista ou comunista. Nas ideias e na natureza, a dose faz o veneno. Acontece que as almas autoritárias só conseguem reconhecer as instâncias do “sim” e do “não”. É gente que jamais vai descobrir a palavra “perhappiness”, de Paulo Leminski.
Há uma diferença gigantesca — que separa a moderação da estupidez — entre reconhecer a inadequação de uma criança no espaço em que há um homem nu, especialmente numa lógica de interação, e a acusação bucéfala, ignorante, tecnicamente errada, de “pedofilia” ou “incentivo à pedofilia”.
Bem, dizer o que a esses seres tão ligeiros em levantar cartazes e distribuir socos? Podem consultar o que diz a psicologia a respeito da pedofilia. Com um pouco mais de cuidado, serão informados de que a pedofilia se exerce nas sombras. E o pedófilo é quase sempre alguém do círculo de relações da criança. Nada disso estava e está caracterizado no MAM. Inadequação? Falta de bom senso? Disposição para a afronta dos valores ditos tradicionais? Acho que sim. Pedofilia? Não!
O poeta Ferreira Gullar, que foi o crítico que escreveu com mais propriedade sobre a obra de Lygia Clark, talvez esteja a se revirar no túmulo. E Lygia também. É preciso apelar a um triplo salto carpado hermenêutico para justificar que aquela nudez dialoga, traduz, se relaciona, se correlaciona ou tangencia a obra da artista. Ouvi a explicação do responsável pela exposição. Transcrita, não passa de um amontado de conceitos mal digeridos e de arbitrariedades teóricas. Mas notem que não estou aqui a decretar: “Aquilo não é arte”. Já chego ao ponto. Assim, ainda que o rapaz estivesse expondo o seu peru — e o corpo nele pendurado — a adultos, considero a coisa uma rematada tolice. E daí que eu veja assim? O mundo não existe para satisfazer meus gostos e minhas escolhas. Posso até lamentar a realidade. Mas assim é.
O que é arte?
Se a acusação de pedofilia é uma estupidez, não menos constrangedor é ver um bando de desocupados a decretar: “Isso não é arte?” Não é? Quem decidiu que não? Quem vai decidir o que é? Que tribunal há de fazer essa distinção e essa avaliação? Notem: eu posso escrever aqui: “Basquiat não é arte; é mistificação”. E depois me explico. Ou não me explico. Uma coisa é certa: não posso integrar uma milícia para tentar impedir a exposição. Com ou sem Lei Rouanet. E também não me sinto obrigado a mudar de opinião porque um quadro seu foi leiloado por US$ 110 milhões. Há uma diferença gigantesca entre a questão de gosto e a vontade censória e legiferante. Sempre fui e sou muito duro com o que me desagrada. E o ânimo censório me desagrada como qualquer expressão de ignorância.
O que não é arte? A nudez? Pode ser e pode não ser. Há, sim, critérios objetivos para avaliar um trabalho, mas a questão de gosto e aquilo que o observador decide ser o propósito de uma determinada atividade contam. O brilhante Paul Johnson é capaz de dizer esta besteira (eu acho besteira!) sobre Picasso:
“A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo, em nenhuma de suas obras, um esforço para mostrar a arte com um propósito moral. Tal esforço é a essência do grande artista. Então, desconsidero Picasso completamente”.
E daí? Não parece que a frase autorize alguém a propor que se impeça uma exposição sobre Picasso. Nem essa avaliação, que me parece uma birra insana, anula o brilho de outras coisas que escreveu.
Não cabe a Alexandre Frota e a outros “frotinhas” que se consideram superiores ao Alexandre Frota original definir o que é arte é o que não é. Ou o que é pedofilia e o que não é. Ou o que presta e o que não presta. No máximo, eles podem ter opiniões a respeito. E, por óbvio, podem manifestá-las. Mas que se note: não admitiria que se saísse por aí a espancar pessoas em defesa das obras de Mozart, de São Thomás de Aquino ou de Platão.
Encerro
Aquela criança estava no lugar errado. Erro primário de sua mãe. Erro associado da curadoria. Mas isso não dá aos apocalípticos críticos da exposição o direito de tutelar a sociedade por meio de um comportamento miliciano. Essa é a só a “religião da destruição do século 21”, de que Liliana Pinheiro (ver post anterior) tratou em seu texto.
De resto, meus caros, muito cuidado com o chamado “incompreensível”. Às vezes, faltam-nos os instrumentos para… compreender! Nesse caso, a responsabilidade é nossa. Não do objeto da nossa crítica.
E não se esqueçam: já começou a temporada de caça aos votos. Há uma batalha realmente feroz nas ruas para ver quem consegue representar, com mais propriedade a estupidez. Se o mundo ficar mais obscurantista, mais burro e menos tolerante, tudo bem para os caça-votos. O mundo que se dane. Querem é se arrumar.
Fonte: Blog de Reinaldo Azevedo
Créditos: Reinaldo Azevedo