Após 42 anos, Luís está completando a transição e se tornando, quase que definitivamente, Flávia Bianco. Quem o vê hoje não supõe que o cantor e publicitário, que exerceu papel profissional importante no Porto de Santos, tenha sido um barbudo e rechonchudo pai de família, com dois casamentos e uma filha que, nas horas vagas, exercia (e continua exercendo) a paixão pela música no grupo vocal Alenvox.
Várias coisas, curiosamente, não mudaram na sua vida. No seu grupo, formado por duas moças e um rapaz, por exemplo, sempre fez e continua fazendo uma das vozes masculinas. Na vida afetiva, por mais incrível ainda que pareça, se diz heterossexual. A mudança de gênero, segundo conta, não tem nada a ver com mudança de orientação sexual.
Outras coisas, no entanto, mudaram radicalmente. A principal delas talvez tenha sido a autoestima. No tempo em que era Luís, chegou a pesar 120 kl. Hoje, com 60 kl e como Flávia, apesar de todas as dificuldades, diz que vive a época mais feliz da sua vida e trocou a indiferença pelo espelho por uma paixão indiscutível pelo ato de se admirar.
Está desempregada há dois anos, ou seja, nunca exerceu a sua profissão nas empresas do porto como Flávia. Após 25 anos no mercado, não conseguiu ainda recolocação.
“Comecei a trabalhar aos 14 anos. Me formei em Publicidade e, durante 20 anos da minha vida, trabalhei em empresas ligadas ao setor portuário. Há um ano, aos 42, resolvi aceitar a minha condição de transgênero e comecei a tomar hormônios femininos. As coisas ficaram ainda mais difíceis, pois a minha condição causa impactos no mundo corporativo”.
Apesar das dificuldades, ela não se arrepende de ter mudado. Ainda pequena, aos sete anos, colocou o primeiro vestido e se identificou. Foi crescendo, amadurecendo e, sem que os outros soubessem, vivia seu lado feminino apenas na intimidade. Ela garante que essa situação nunca afetou seu desempenho profissional.
Um apelo, feito no início da semana por meio das redes sociais, acabou viralizando e tornou essa questão, quase que filosófica, evidente. Após 25 anos no mercado, ocupando cargos importantes em grandes empresas portuárias, Flávia não consegue recolocação.
Flávia foi vítima da crise. Na última empresa onde trabalhou, ainda como Luís, acabou sendo desligada junto com outros vários colegas por conta da contenção de gastos. Desde então, como Flávia, foram dezenas de currículos enviados, várias entrevistas marcadas e alguns lampejos de esperança, que se converteram em frustração por conta das sucessivas negativas recebidas.
“É difícil distinguir se falta oportunidade pelo fato de ser trans ou pela própria crise. É inegável, porém, que o fato de ser trans é um complicador a mais no processo seletivo das empresas, que ainda estão presas, em sua maioria, ao conceito de ‘boa aparência’. Sou privilegiada pela minha formação, mas o fato de ter me assumido depois dos 40 pesa bastante”, lamenta.
A publicitária reconhece que, no mercado, passou a ser vista de uma forma diferente quando passou a se vestir como mulher. Apesar disso, ela revela que nunca foi alvo de preconceito. Flávia diz que alguns amigos se afastaram, o que já era esperado, mas muitos outros se aproximaram. As grandes dificuldades, de acordo com ela, ocorrem dentro da própria família.
“A relação com a família é diversificada. Vai desde a aceitação integral até a não aceitação, mas o respeito existe. Isso me abala um pouco, mas cada um tem o direito de aceitar ou não. O respeito é que é uma constante necessária. A minha filha, que tem nove anos, descobriu por causa de uma foto e me fez perguntas. Procuro responder tudo. Ela me aceita do jeito que eu sou”, diz.
O tratamento de Flávia, que conta, inclusive, com apoio psicológico, deve durar mais quatro anos. A publicitária relata, porém, que não pensa, de forma alguma, em fazer uma cirurgia de mudança de sexo. Apesar de estar passando por uma transformação de gênero, ela explica que isso não afeta sua sexualidade e que não sente atração por pessoas do sexo masculino.
“É esquisito, mas é isso. Gênero não tem a ver com sexualidade. Antes, olhava no espelho com pouquíssimo interesse. Sempre tive a impressão de que não era eu. Agora, quando me visto como mulher, fico me admirando. Com o cabelo crescendo e a barba removida, é um prazer me olhar e dar um excelente ‘bom dia’ para mim mesma. Hoje consigo sorrir…”, comemora.
Uma das conquistas mais recentes de Flávia foi incluir o nome social no CPF. “Sendo contratada, gostaria de ser tratada como qualquer outra pessoa do sexo feminino. Não faço questão de beijo no rosto, mas quero liberdade para expressar a minha identidade feminina, sendo tratada como qualquer outra mulher, sem privilégios ou distinções”, diz.
A postagem divulgada por Flávia por meio das redes sociais, no último fim de semana, continua repercutindo e recebendo milhares de compartilhamentos. A história fez com que centenas de pessoas enviassem mensagens de solidariedade e de apoio mas, até agora, a publicitária não recebeu nenhuma oferta para que pudesse voltar a trabalhar.
“A repercussão do post e o carinho das pessoas me surpreendeu. Foi importante para expor um pouco do meu processo, do que enfrento, e para esclarecer dúvidas. Acredito que expondo um pouco mais o meu lado pessoal as pessoas entendam e me abram oportunidades. Tudo o que aconteceu foi muito bom. Agradeço cada mensagem positiva”, finaliza.
Fonte: G1