entrevista

Carol Duarte, de 'A Força do Querer', fala sobre a história que está mexendo com o país

O que apareceu de gente, de todos os setores, querendo tirar uma foto com Ivana/Ivan, da novela “A força do querer”, foi algo que há muito tempo não acontecia

Foi tarefa complicada levar Carol Duarte da portaria da Globo até o estúdio fotográfico do prédio, onde foram feitas as imagens desta matéria. O que apareceu de gente, de todos os setores, querendo tirar uma foto com Ivana/Ivan, da novela “A força do querer”, foi algo que há muito tempo não acontecia.

— É a sua primeira novela? Porque nunca tinha te visto antes — perguntou uma das fãs, começando, sem querer, a entrevista que viria assim que ela terminasse a sessão de selfies.

De fato, a presença da atriz leva a um sentimento contraditório: todos a conhecem, mas ninguém sabe quem ela é. Carol tem entrado diariamente nas casas brasileiras como a personagem trans que protagonizou emocionantes cenas nas últimas semanas, mas não deixa de ser uma íntima desconhecida do público. Mesmo pedindo para tirar uma foto, a pergunta na cabeça de todo mundo é: de onde vem essa menina com interpretação tão arrebatadora? Quando escrevemos todo mundo, é “todo o mundo” mesmo. Ao fim do ensaio, ela foi correndo dar uma entrevista ao jornal “The New York Times”.

Comecemos, então, pelo básico: Caroline, de 26 anos, é de São Bernardo do Campo, em São Paulo, e, antes do sucesso, vivia entre a casa dos pais e a Escola de Arte Dramática da USP, na capital. Portanto, é ingenuidade pensar que esse talento está posto à prova pela primeira vez. Desde os 15 anos, ela se dedica ao teatro e coleciona uma porção de peças no currículo, inclusive o espetáculo “As siamesas: Talvez eu desmaie no front”, que escreveu, atuou e foi obrigada a interromper por causa da novela e da mudança para o Rio.

Foi a carreira nos palcos que a levou para a Rede Globo. Um produtor de elenco da emissora viu uma atuação, ainda em São Paulo, e propôs que ela deixasse uma ficha no banco de talentos da casa. Carol topou, sem muita pretensão, e chegou até a fazer dois testes para papéis em séries na TV, mas acabou não passando. Foram dois passos para trás antes de dar dez para frente; afinal, seu personagem é um marco na TV brasileira ao mostrar, pela primeira vez, os conflitos de uma transição de gênero.

— O curioso é que fui eliminada no meio do processo seletivo para viver a Ivana. Ligaram e falaram: “Não rolou.” Sei lá o que aconteceu, só sei que me colocaram de novo — brinca.

O engano foi desfeito rapidamente e, depois de mais alguns testes, finalmente recebeu a ligação que mudou sua vida.

— Estava na copiadora da USP, cheia de papéis para xerocar, aí me ligaram. Na hora, não prestei muita atenção. De repente, fui me dando conta. Fiquei superfeliz, liguei para a Carla (Zanini, que divide com ela a autoria da peça “As siamesas”) e fomos ao McDonald’s — diz Carol, mostrando que nem tudo é glamour para quem aparece, ou vai aparecer, na TV.

Carla, que viveu com a amiga todo o processo de seleção, já que as duas estavam sempre juntas por causa da USP, ficou tão atônita que nem lembra bem o que falou:

— Talvez eu tenha soltado um palavrão de felicidade, ou dito que já sabia, ou que estava indo encontrá-la. Ou tudo isso ao mesmo tempo! Comemoramos comendo cheeseburguer e achando tudo muito incrível e maluco.

O desafio foi aceito, para a sorte da autora Glória Perez. Para ela, Carol estava “pronta”.

— Na interpretação dela, vimos sensibilidade, nuances e uma compreensão profunda do que dizia. A Ivana estava ali — diz Glória, que não teve medo de apostar em alguém com experiência restrita aos palcos. — Preferíamos que fosse uma atriz desconhecida mesmo, colocaria mais verdade no personagem. E, sendo de teatro, traria também o trabalho de corpo, que é essencial.

A escritora Helena Vieira, que deu consultoria para Glória Perez por sua atuação no movimento trans, acredita que boa parte do sucesso está na conta de Carol:

— Havia uma preocupação com a possibilidade de ficar caricato, mas a atriz expressa um sofrimento muito comovente.

Helena gosta de falar na palavra “catarse” e parece que é um pouco disso mesmo que está acontecendo com muita gente. Por incrível que pareça, a atriz não recebeu até agora nenhuma agressão verbal ou física que a machucasse — um sopro de esperança em tempos de tanta tensão social.

— Se a gente pensar que o Brasil é o país mais difícil para uma pessoa LGBT viver, a rejeição poderia ser muito alta. Deu medo, mas depois passou. Não tenho visto nada negativo nas ruas. Nas redes sociais, um ou outro fala que “Deus criou o homem e a mulher”, mas isso acaba sendo imediatamente combatido por muitas outras pessoas — diz Carol, que tem quase 490 mil seguidores no Instagram.

A atriz continua passando incólume pelos haters, na medida do possível, mesmo depois de ter seu relacionamento amoroso com a professora Aline Klein exposto em sites e revistas. Na tentativa de que tudo continue assim, prefere ser discreta e não levantar bandeiras. O cordão dos curiosos e a turma ávida por militância podem dar unfollow. Não adianta insistir, muito menos se decepcionar, porque o assunto “Carol e Aline” não vai render mais do que três linhas.

— Estamos juntas há quatro anos, bem felizes. É minha parceira. Mas não quero falar muito disso, não. Agora é o momento do trabalho, a minha vida é minha vida e não tem nada demais — diz ela, ressaltando, no entanto, que sonha em ser mãe, mas não está nem aí para burocracias de cartório. — Não tenho vontade de casar, mas quero ter filho. Acho que um só está bom.

Mas isso é assunto para um futuro um pouco distante. O plano agora é terminar “A força do querer” e se dedicar, novamente, ao teatro, que anda vivendo um drama por causa dos cortes nos programas de fomento público à cultura:

Ela nega que tenha assinado um contrato de dois anos com a TV Globo, como tinha sido ventilado nas últimas semanas. Assim que gritarem o último “corta” para Ivana/Ivan, ela larga o Projac e volta para São Paulo, onde estão a família, a namorada e a faculdade. Ah, e vai também fazer as unhas e raspar os pelos da perna, coisas proibidas nos últimos meses. Detalhe: quem enxerga bem vai perceber que as fotos de Carol neste ensaio não passaram pela depilação do Photoshop.

— Sou vaidosa. Adoro fazer uma unha, usar maquiagem e comprar roupas. Mas não sou tão antenada, não sigo tantos modismos — conta ela, que se encheu de coragem para a cena em que muda radicalmente os cabelos. — Nunca tinha cortado tanto assim, variava pouco. Estranhei nos primeiros dias, passava muito xampu na mão, mas agora estou gostando. É um corte masculino mesmo, mas essa coisa de masculino e feminino, sei lá mais o que é, né?

 

 

Fonte: GLOBO