análise

Renato Lessa: “Sucesso de Temer tem custo terrível, com emergência de políticos deploráveis”

Para cientista político, principal risco ao presidente virá da ameaça à estabilidade fiscal

O cientista político Renato Lessa, professor de teoria política da PUC-Rio e ex-presidente da Biblioteca Nacional, avalia que o presidente da República, Michel Temer (PMDB), ainda possui “gordura para queimar” no Congresso, apesar da inédita taxa de reprovação e de suspeição. Por isso, ele conseguiu blindagem na votação da Câmara dos Deputados, que derrubou nesta quarta-feira a abertura de uma ação penal contra o presidente enquanto ele ocupar o Palácio do Planalto. E mesmo acusado de corrupção e acossado por outras acusações judiciais, o presidente provavelmente conseguirá blindagem do Congresso contra novas denúncias. Para Lessa, Temer é menos ameaçado pelas flechas do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, do que pela chance de perda de apoio da elite empresarial brasileira se ameaçar a estabilidade fiscal, avalia o autor de Presidencialismo de Animação: ensaios sobre a política brasileira, 1993-2006. “Todo sistema político tem um ponto de ruptura”, avalia o cientista político. “Considerando que o Governo Temer não tem nenhuma vergonha, bastam 200 deputados que ele vai até o fim. Mas tudo depende ainda do que vai acontecer”, acrescenta.

Pergunta. Temer é um presidente acusado de corrupção, sem apoio popular. Na teoria, poderia estar frágil. Como explicar a força para derrubar a abertura de uma ação penal?

Resposta. Existe uma completa dissociação de representação política em relação ao eleitorado de modo geral. Segundo pesquisas de opinião, a impopularidade do Governo é inédita. Mas, ao mesmo tempo, dentro do Congresso, que cada vez mais se configura como caixa-preta imune ao que se passa fora, o presidente consegue obter uma blindagem, cuja natureza é a mesma massa de composição parlamentar que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Com alguma perda, tentaram blindar o ex-deputado Eduardo Cunha, mas não conseguiram. Até o momento, essa massa tem se mostrado capaz de blindar o presidente. Alguns cientistas políticos comemoram isso, porque dizem que nunca houve tamanho sucesso de presidente para conseguir base parlamentar. Mas esse sucesso tem um custo terrível, que é a degradação política e a emergência de tipos políticos deploráveis. O preço da manutenção de Temer é a degradação progressiva da representação política, sobretudo quando parlamentares encaminham propostas de reforma eleitoral que vão degradar ainda mais as conquistas do Brasil no campo da representação política, como o pluripartidarismo. No Brasil, os representantes não representam os representados. Os representantes se fazem representar no governo. É uma degradação profunda do sistema de representação.

P. Até onde vai a capacidade de Temer de manter apoio do Congresso?

R. Contra denúncias do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, Temer tem blindagem no Congresso. Mas todo sistema político tem um ponto de ruptura. Não existe sistema político perfeito. No curto prazo, a quebra será pela perda da estabilidade fiscal, porque operadores do mercado financeiro não vão tolerar a quebra fiscal. A ninguém interessa isso. Mas (essa estabilidade fiscal) é uma dificuldade para Temer, porque, para se sustentar legalmente, esse governo tem de esgarçar a questão fiscal, ser leniente, promover anistias. Esse condomínio governista tem um preço. Não há amigos ali. É a cultura permanente que vem sendo reposta. O plano B é o sucessor, Rodrigo Maia. É possível que, na segunda ou terceira denúncia de Janot, se elites desertarem do governo Temer por um quadro de degradação fiscal e paralisia das reformas, por que mantê-lo? Se for possível colocar outra peça que assuma com compromisso de tentar recolocar o carro nos trilhos, tal como se pretendeu com a derrubada da Dilma. Foi pra isso que ela foi derrubada. Ninguém hoje com meio neurônio pode acreditar que Dilma foi derrubada por pedalada fiscal.

P. Como Temer conseguiu essa blindagem e quais as chances de perdê-la?

R. Sempre houve essa coisa de conseguir apoio pela liberação preferencial de emendas. O fator agravante é que todo mundo está sob foco da hiper-judicialização. Os juízes e promotores são cuidadores do bem público. E há um choque da classe política degradada com o sistema Judiciário hipertrofiado pela Constituição e pelas motivações políticas que esse segmento tem. Grande parte da insistência em manter o quadro atual tem a ver também com riscos do que pode acontecer com pessoas se saírem do poder. Temer pensa nisso todo dia. A Presidência da República é um refúgio para Temer e seus assessores. Mas o que sustenta Temer não é só a degradação parlamentar e a capacidade infinita de ultrapassar limites que julgávamos inaceitáveis. O inaceitável é renegociado a cada dia. Tem a ver também com a funcionalidade de Temer para grandes interesses que comandam a vida brasileira. Enquanto a classe empresarial entender que ele é fiador das reformas, isso é elemento fundamental para manutenção do governo, levando em conta que falta um ano e meio para esse governo acabar. E qualquer quadro de substituição, mesmo que seja o deputado federal Rodrigo Maia, pode provocar incerteza, instabilidade. Elites podem ir com Temer até onde for possível e manter um plano com Rodrigo Maia como fiador das reformas. Se Temer ultrapassar o limite da responsabilidade fiscal, como está ultrapassando agora, esse é o ponto de risco. Esse é o ponto de quebra. Seria a inviabilização do programa. O programa do governo é apontar a proa do barco para o século 19, desfazer a acumulação democrática que tivemos desde 1946, com proteção do trabalho etc. Chegamos ao paroxismo que a fiscalização do trabalho escravo foi suspensa. Isso é pré-1888. Esse governo consegue a façanha de associar a modernidade com o retorno ao século 19. É como se pudesse pavimentar o século 21 com paralelepípedos do século 19. É regressão em todos os campos: cultura, direitos sociais, previdência. Não tem nada de novo. É regressivo. Isso é pré-estado de bem-estar social, um mundo em relação ao qual o filósofo e historiador Karl Polanyi designava como mundo do “moinho satânico”. É uma sociedade de mercado onde tudo pode acontecer, uma loteria, não tem proteção. É um retorno à perspectiva do “moinho satânico”, apesar do apoio dos evangélicos ao governo.

P. Ficam fissuras, como um racha no PSDB, no bloco governista depois dessa votação na Câmara?

R. Fica alguma fissura. O PSDB não vai mais poder explicar aos eleitores no que difere do PMDB. O PSDB virou o PMDB do Temer. Uma fração do PSDB está percebendo isso. Fernando Henrique sabe disso, mas está emparedado em São Paulo por Geraldo Alckmin, João Doria e José Serra. Considerando que o governo Temer não tem nenhuma vergonha, bastam 200 deputados que ele vai até o fim. Isso ele tem. O volume morto do Congresso é suficiente para dar esse quórum. Mas tudo depende ainda do que vai acontecer. Eduardo Cunha também era dado como inexpugnável e foi traído por todos. Temer é mais inteligente do que Cunha, então tem base no Supremo Tribunal Federal, e o principal assessor militar dele, Sérgio Etchegoyen, é fiador importante. Temer conseguiu uma sucessão na Procurador-geral da República que desloca a turma do Janot. Temer vai sobrevivendo, conversa com elites, ruralistas estão na mão dele. O que está sendo feito na política indigenista é uma coisa criminosa. Temer tem gordura para queimar ainda, sobretudo pela ausência de vergonha. Taxa de resiliência à vergonha dessas pessoas no poder é uma coisa a ser estudada ainda. Essa resiliência à vergonha permite que atores políticos a cada dia renegociem o limite do inaceitável.

P. Se você caracterizou a era Lula como presidencialismo de animação, do que chamar o presidencialismo de Temer?

R. O presidencialismo de Temer é um presidencialismo de ilusão. O gesto das mãos dele é de alguém que quer materializar o imaterializável. É também um presidencialismo de decomposição, de regressão. Ele mantém o que há de pior no presidencialismo de coalizão e um programa social reacionário e regressivo.

Fonte: El País